O livro “O negro no futebol brasileiro” (1947), clássico de Mário Filho, irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues, consagrou o jogador Francisco Carregal como o primeiro negro a participar de uma partida no Brasil, defendendo o Bangu contra o Fluminense, do Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1905. Uma pesquisa do historiador José Moraes dos Santos Neto, realizada no Centro de Memória da Unicamp, pretende mudar o rumo da história: com base em documentos, principalmente da Câmara Municipal de Campinas, o pesquisador aponta que Miguel do Carmo foi o primeiro afrodescendente a pisar num campo no país, na então recém-fundada da Ponte Preta, em 1900.
Como Carregal, que era funcionário Companhia Progresso Industrial do Brasil —e tinha no futebol uma atividade paralela—, Miguel do Carmo era ferroviário: trabalhava na Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Era filho de escravizados e nasceu livre, em 1885, beneficiado pela Lei do Ventre Livre. A lei, de 1871, concedia liberdade a partir daquela data aos filhos nascidos de escravizadas. “Quando tinha 15 anos, em 1900, Miguel participou de maneira amadora, coisa de menino mesmo, da fundação do primeiro time da Ponte Preta”, disse Santos Neto.
De acordo com a pesquisa do historiador, a primeira equipe da Ponte Preta nasceu dentro da Vila Operária da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, fundada em 1868 para ligar Jundiaí a Rio Claro, diante da expansão cafeeira daquela região. “Em 1872 foi construída a vila operária da companhia, em Campinas, e é lá que se formou a equipe de futebol”, observou o historiador. “Importante destacar que em 1900, quando se constitui essa equipe de futebol, respirava-se no proletariado os ideais de igualdade do anarquismo, trazido pelos imigrantes, por isso foi aceito um jogador negro, na contramão do que acontecia no resto do país, onde o esporte era altamente elitizado.”
Alguns clubes, na época em que Miguel do Carmo despontou no futebol, tinham regras que chegavam a proibir explicitamente a presença de negros em seus quadros. Apesar do ineditismo, de colocar o primeiro afrodescendente em campo, a Ponte Preta demorou mais de um século para ter seu primeiro presidente negro. Foi somente em 2019, quando Sebastião Arcanjo, o Tiãozinho, assumiu o cargo após a renúncia de José Armando Abdalla. Ele ficou na presidência até 2022.
A história e o próprio nome da Ponte Preta estão ligados ao bairro onde o clube foi fundado. De acordo com o jornalista e pesquisador Edu Cerioni, a ferrovia, com seus trilhos, isolou um bairro de Campinas, onde havia cerca de 200 casinhas —uma delas habitada por Miguel do Carmo. Houve protestos dos moradores —em função do isolamento— e uma ponte foi instalada pela Companhia Paulista, sendo pintada com piche para maior conservação. “Foi ela que inspirou o nome do bairro para Ponte Preta e também batizou a nova associação atlética que surgia”, explicou Cerioni.
Miguel jogou por pouco tempo nessa equipe da Ponte Preta, até 1904, de acordo com Santos Neto. Depois continuou carreira de ferroviário, na Companhia Paulista, como fiscal de linha, até 1925. É da carteira funcional dessa empresa a única fotografia que restou do atleta. Morreu em 1932, aos 47 anos.
Raquel do Carmo, neta de Miguel, que vive em Campinas, disse que até saber da pesquisa do historiador a família desconhecia o ineditismo da atuação do avô no futebol. “Nunca imaginamos que ele foi o primeiro negro, foi uma surpresa”, afirmou. “Pena que não temos nenhum registro dele, foi tudo apagado pelo tempo.”
Ela contou que seus avôs tiveram oito filhos, e a avó teve que criá-los sozinha depois da morte do marido. “A sobrevivência era dura e não havia tempo para cultivar a memória.”
Apesar da falta de registros, o interesse pelo futebol permaneceu na família e três bisnetos de Miguel tentaram carreira profissional. Nenhum conseguiu seguir adiante, mas um deles, Lucas do Carmo, filho de Raquel, profissionalizou-se como analista tático individual de atletas. “Trabalho a performance de jogadores que atuam no Brasil e no exterior”, contou Lucas. “A história do meu bisavô virou nossa principal herança e está no nosso sangue.”
Essa história ganhou destaque internacional por meio de uma carta enviada, em 2003, pelo pesquisador Santos Neto à Fifa (Federação Internacional de Futebol), relatando sua descoberta. Em resposta, o chefe de relações públicas da entidade, Frederico Addiechi, afirmou: “Histórias como essa e esforços a favor da integração e contra qualquer forma de discriminação são um positivo legado para o futebol mundial e um exemplo que deveria ser imitado em todo mundo”.

