A aprovação do projeto de lei que suspende os efeitos de uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que define as diretrizes para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de estupro — incluindo a possibilidade de interrupção da gravidez sem exigência de boletim de ocorrência, decisão judicial ou autorização dos pais —, acirrou a polarização entre progressistas e conservadores, dentro e fora da Câmara dos Deputados. Enquanto ministérios, entidades de defesa dos direitos humanos e das crianças e adolescentes, e parlamentares da base do Palácio do Planalto foram veementes em criticar o PL, organizações religiosas e congressistas da oposição aplaudiram a aprovação da matéria. Já se fala em levar a questão para o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir sobre a constitucionalidade, caso seja aprovado sem alterações no Senado.
A vice-presidente do Conanda, Marina Poniwas, está articulando uma mobilização social contra o tema. “Além de afrontar os direitos de crianças e adolescentes e colocá-las em situação de risco e produzir processos ainda de revitimização, o projeto de decreto legislativo é inconstitucional. Ou seja,é um projeto que enfrenta as competências do nosso conselho previstas em lei”, lembra.
Marina destaca que “ao suspender essa resolução, suspendem-se as diretrizes e voltam as barreiras que atrasam, que inviabilizam, o aborto que já é permitido em lei desde 1940”. Já o Ministério das Mulheres afirmou estar “preocupado” com a aprovação do projeto de lei pela Câmara dos Deputados. “O PDL, ao anular essa orientação, cria um vácuo que dificulta o acesso dessas vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção. (…) Suspender esta medida é fechar os olhos para a violência e falhar com as meninas brasileiras”, lamenta a nota da pasta.
O Ministério dos Direitos Humanos também emitiu nota dizendo que “a suspensão de seus efeitos constitui grave retrocesso na política de proteção à infância e adolescência no Brasil, cria barreiras ao acesso a direitos fundamentais e fragiliza o atendimento especializado previsto em leis. Tal medida contraria o princípio da prioridade absoluta, além de comprometer a atuação intersetorial necessária ao enfrentamento das violências que atingem crianças e adolescentes”.
A ONG Católicas pelo Direito de Decidir manifesta posição semelhante à do Ministério das Mulheres. A coordenadora de Desenvolvimento Institucional da organização, Carla Angelini, destacou que assistiu aos votos do projeto com indignação. “A fé tem que nos acolher e não recriminar. Tem que acolher até em situações onde a mulher tem que interromper uma gestação, por exemplo”, frisou.
No caso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a entidade frisa que defende “a vida humana em todas as suas etapas — desde a concepção até o seu fim natural”. Para a CNBB, “a vida é dom sagrado de Deus e fundamento de todos os demais direitos”. “A defesa da vida exige políticas públicas eficazes de prevenção, acolhimento e cuidado integral, e não a ampliação de práticas que eliminem a vida antes mesmo de nascer”, ressalta.
O Conanda publicou, em maio,a Resolução 258/24, cujo objetivo é garantir a proteção integral e a celeridade no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, conforme preveem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Penal, a Leida Escuta Protegida.
Sem legitimidade
O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/25 foi aprovado na quarta-feira por 317 x 111. O relator da matéria, deputado Luiz Gastão (PSD-CE), afirmou ao Correio que o Conanda “não tem legitimidade para legislar sobre o tema” e que a norma “dificultava o atendimento”, em vez de padronizá-lo. “O Conanda não tem capacidade ou legitimidade para legislar sobre o assunto. Cabe ao Congresso Nacional normatizar. Essa resolução obrigava profissionais da saúde a seguir orientações sem força de lei. Permitia que qualquer pessoa chegasse a um hospital e dissesse que havia sido vítima, sem acompanhamento médico, dos pais ou do conselho tutelar. O que o Conanda estava fazendo era praticar crime contrafetos uterinos”, acusou.
Gastão ressaltou que o texto desconsiderava a legislação que define menores de 18 anos como incapazes. “A resolução buscava fazer com que a criança, que é incapaz pela lei, fosse capaz de determinar o que poderia ser feito,sem assessoramento ou acompanhamento. Isso não é proteção, é exposição”, avalia.
Os bolsonaristas festejaram a aprovação do PL. Segundo a deputada Bia Kicis (PL-DF), a resolução do Conanda “incentivão aborto de menores vítimas de violência, dispensa boletim de ocorrência e protege o estuprador, além de excluir a participação dos pais, o que viola a lei e os princípios familiares”. O líder do Novo na Câmara, Marcel Van Hattem (Novo-RS), classificou a resolução como “um atentado contra a infância”.
“Ao permitir aborto em crianças e adolescentes, sem consentimento dos pais e sem boletim de ocorrência, ela (a resolução) acaba por proteger estupradores e deixar meninas vulneráveis. A Constituição exige a melhor proteção dos interesses de crianças e adolescentes. Tenho certeza de que o Senado também derrubará essa medida absurda”, previu.
Para parlamentares da base governista, o PL é um retrocesso na proteção de meninas vítimas de estupro. “A extrema direita derrubou uma resolução que garantia atendimento humanizado e ágil a vítimas de violência sexual. Os estupradores dessas crianças, em geral, são pais, padrastos e familiares”, salientou a deputada Maria do Rosário (PT-RS).
Pelas redes sociais, a deputada Thalia Petrone (PSol-RJ) observou que é um “absurdo a Câmara derrubar, com mentiras, um ato do Conanda. Cuidar das crianças é garantir acesso à saúde e à interrupção de gestações resultantes de estupro. (…) Meninas têm cinco vezes mais chances de morrer na gravidez ou no parto”.
A deputada Sâmia Bomfim (PSol-SP), também pelas redes, publicou que “a cada dois dias, uma menina de até 14 anos morre em decorrência da gravidez. (…) As mais pobres enfrentam gestações arriscadas ou recorrem a métodos inseguros e fatais”.
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