Na despedida do Supremo Tribunal Federal, o agora ministro aposentado Luís Roberto Barroso acompanhou, ontem, o voto da ministra aposentada Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Na última decisão como 11º integrante do STF, o magistrado afirma que a interrupção da gravidez não deve ser uma questão criminal, mas de saúde pública. Assim que o voto foi publicado no plenário virtual da Corte, o decano Gilmar Mendes pediu destaque para que o caso seja levado ao plenário físico, o que suspende o julgamento no atual formato. A data para análise da matéria ainda será decidida pelo presidente Edson Fachin.
Segundo Barroso, “a discussão real não está em ser contra ou a favor do aborto. É definir se a mulher que passa por esse infortúnio deve ser presa. (…) A interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal”. Para o agora ministro aposentado, o Estado deve atuar evitando que a interrupção forçada da gravidez ocorra, mas sem criminalizar mulheres que enfrentam essa situação.
“Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado é evitar que ele aconteça, oferecendo educação sexual, contraceptivos e amparo à mulher em circunstâncias adversas”, observa. Ele destaca que a criminalização não reduz o número de abortos, conforme mostram pesquisas apoiadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Apenas impede que ele seja feito de forma segura. (…) A maneira adequada de lidar com o tema é fazer com que o aborto seja raro, mas seguro”, propõe.
Barroso também chama a atenção para a desigualdade social que a atual legislação aprofunda. “A criminalização penaliza, sobretudo, as meninas e mulheres pobres, que não têm acesso a informações, medicamentos ou procedimentos adequados. As mais ricas podem recorrer ao exterior ou a clínicas privadas”, frisa.
O magistrado compara o Brasil a outras democracias, ressaltando que praticamente nenhuma nação desenvolvida mantém a criminalização do aborto nas primeiras semanas. “Isso inclui 39 países europeus, além de Canadá, Austrália, França, Espanha, Itália, Portugal e Reino Unido. Nos Estados Unidos, a decisão cabe a cada estado, e a maioria permite”, enumera.
Ainda no voto, Barroso faz uma reflexão sobre liberdade e igualdade: “As mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia para fazerem suas escolhas existenciais. Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há muito tempo”, provoca.
Debate moral
Ele ressalta que o debate moral e religioso deve ser respeitado, mas não pode se sobrepor à liberdade individual. “É legítimo ter posição contrária ao aborto e pregar contra a sua prática. Mas será que a regra de ouro das tradições religiosas — tratar o próximo como gostaria de ser tratado — é melhor cumprida enviando uma mulher ao cárcere por esse drama? Pessoalmente, entendo que não”, afirmou.
Ao encerrar o voto, Barroso defende que o papel do Estado, em uma sociedade democrática, não é impor uma visão moral, mas assegurar que cada pessoa viva conforme sua própria convicção. “Numa sociedade aberta e democrática, pessoas bem-intencionadas podem discordar radicalmente. O dever do Estado não é escolher um lado, mas garantir a liberdade de escolha”, lembra.
A ADPF 442, apresentada em 2017 pelo PSol em parceria com o Instituto Anis, defende que o embrião não seja reconhecido como “pessoa constitucional”, mas como uma “criatura humana intra útero”, referindo-se a condições, procedimentos ou desenvolvimentos que ocorram com a gestante. O argumento busca afastar a proteção constitucional até o nascimento e permitir que a interrupção da gravidez, até a 12ª semana, não configure crime.
O julgamento da ação teve início em setembro de 2023, no plenário virtual, sob relatoria da ministra Rosa Weber, então presidente do STF. À época, ao se aposentar, ela antecipou o voto favorável à descriminalização afirmando que desejava “deixar sua marca” no tema. Barroso, que assumiu a presidência do Supremo depois da saída da magistrada, pedira destaque para que o debate fosse levado ao plenário físico, onde todos os ministros se manifestam oralmente. Desde então, a ação não havia sido pautada novamente.
Nos últimos meses da gestão à frente do STF, o ministro chegou a comentar que o tema “precisava de amadurecimento” e que o país “ainda não estava pronto” para o debate.