Após oito meses de tensão em meio à pior crise nas relações entre os dois países em 200 anos, os presidentes Lula e Donald Trump devem se reunir hoje, na Malásia, em um encontro que será, ao mesmo tempo, teste e termômetro do diálogo entre Brasil e EUA.
O momento geopolítico — com intensos embates e pressões nas relações internacionais — gera dúvidas entre analistas e diplomatas sobre se o quadro atual é mais favorável ou não ao entendimento.
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O foco da conversa deve ser o tarifaço imposto por Trump às exportações brasileiras para os EUA, mas há a sombra de temas delicados, das sanções contra autoridades brasileiros à pressão americana sobre a Venezuela, além de incertezas sobre a permanência do cessar-fogo entre Israel e o grupo terrorista palestino Hamas e uma solução para a invasão da Ucrânia pela Rússia.
O esperado encontro de Lula e Trump será à margem da 47ª reunião de cúpula da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), da qual os dois são convidados.
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Ontem, apesar de o compromisso ainda não figurar na agenda oficial, o americano disse a jornalistas a bordo do seu avião presidencial a caminho de Kuala Lumpur que “provavelmente” se encontraria com o brasileiro hoje. A expectativa era pelo fim da tarde na Malásia, manhã no Brasil.
Sobre a possibilidade de reduzir tarifas sobre produtos brasileiros, Trump fez pela primeira vez um aceno positivo. Disse que, “sob as circunstâncias certas, claro”.
Já na capital malaia, Lula voltou a se dizer confiante em relação aos resultados da reunião, em entrevistas após ser recebido pelo primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, e antes da cerimônia em que receberia o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional do país.
— Na verdade, espero que role (a reunião). Vim com a disposição de que a gente possa encontrar uma solução. Tudo depende da conversa. Trabalho com o otimismo de que a gente possa encontrar.
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Informado sobre as condições mencionadas por Trump para rever o tarifaço, repetiu que a negociação está aberta:
— Não tem exigência dele e não tem exigência minha ainda. Vamos colocar na mesa os problemas e tentar encontrar uma solução. Pode ficar certo de que vai ter uma solução.
O presidente, que completa 80 anos na segunda-feira ainda brincou dizendo que acha que Trump “pode comer um pedaço do bolo”.
‘Não tem assunto proibido’
Na sexta-feira, ao concluir sua visita à Indonésia, onde inclusive recebeu um bolo de aniversário do presidente daquele país, Lula deu a entender que a negociação com os EUA poderá ir além de temas econômicos, afirmando que “não tem assunto proibido”.
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O governo brasileiro vê o encontro como um teste para o diálogo e uma chance de medir até onde Washington está disposto a recuar nas sanções econômicas e diplomáticas aplicadas contra o Brasil desde julho — que, segundo Brasília, têm caráter mais político que comercial.
Na conversa telefônica que os dois tiveram há duas semanas, aventada após o rápido encontro que tiveram em setembro nos bastidores da Assembleia Geral da ONU, o americano evitou mencionar o ex-presidente Jair Bolsonaro, seu aliado, condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos de prisão por tentativa de golpe de Estado.
O gesto foi visto no Planalto como sinal de que a Casa Branca pretende restringir a pauta ao comércio, o que foi bem recebido por grupos empresariais que pressionam por uma solução pragmática.
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Ainda assim, Lula pretende ir além do tarifaço. Quer reiterar o convite para que Trump participe da COP30, em Belém, no mês que vem, e abordar questões regionais e globais. Entre os temas que devem surgir estão as ações de Washington contra governos da América do Sul, como os de Nicolás Maduro, na Venezuela, e Gustavo Petro, na Colômbia.
A ofensiva americana contra Maduro reacendeu atritos regionais e colocou à prova a capacidade de articulação política de Lula, que tenta equilibrar a defesa da soberania dos vizinhos com a manutenção de um diálogo pragmático com Washington.
O petista deve se posicionar como intermediador do conflito, enfatizando que o Brasil pode atuar como protetor da paz na América Latina, promovendo negociações e soluções diplomáticas em vez de confrontos diretos, diante da crescente tensão sobre a situação venezuelana.
Para Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos EUA, o ideal seria que Lula mantivesse cautela diante das tensões entre EUA e Maduro:
— O mais prudente seria esperar para ver se Trump toca no assunto. O Brasil, no melhor dos casos, ouviria e não falaria nada de imediato. Não faz sentido oferecer mediação.
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Lucas Martins, especialista em História Americana e Estudos Globais da Temple University, na Filadélfia, avalia que Trump vê a América Latina sob uma ótica da Guerra Fria, pressionando países a escolherem entre EUA e China. Para ele, a ameaça de invasão da Venezuela é usada para pressionar o Brasil:
— Os EUA podem condicionar concessões de tarifas ao Brasil a um alinhamento mais claro com os interesses americanos em detrimento de uma agenda chinesa. A postura do Brasil em relação à Venezuela e ao uso do dólar nas transações é crucial para as negociações com o governo dos EUA.
O pano de fundo do encontro é um cenário global marcado por conflitos, disputas comerciais e redefinição de alianças no chamado Sul Global. Brian Winter, americanista e editor da revista Americas Quarterly, espera cautela dos dois lados, mas lembra que o foco principal de Trump na viagem será uma reunião agendada com o líder da China, Xi Jinping.
— Trump pode ter se cansado da estratégia anterior e querer evitar mais problemas com o Brasil — especula.
Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, think tank dos EUA dedicado às relações internacionais do Hemisfério Ocidental, destaca que os dois presidentes jogarão com seus eleitores:
— Encontrar-se com o volátil Trump sempre traz riscos, mas será um bom sinal se ambos estiverem preparados para se encontrar e, com sorte, ter uma troca franca e respeitosa sobre questões que afetam profundamente os dois países.
Outro tema espinhoso que pode ser levantado por Trump é a ideia de reduzir o uso do dólar nas transações comerciais entre os países do Brics, como Lula tem defendido no grupo de economias emergentes que inclui a China.
O americano já ameaçou integrantes do bloco com sua metralhadora tarifária caso a iniciativa avance. Lula, segundo interlocutores, deve responder que o uso de moedas locais não é uma afronta ao dólar, mas uma prática já adotada no Mercosul para cortar os custos das operações.
Lula também pretende esclarecer o desequilíbrio desfavorável ao Brasil nas trocas comerciais com os EUA, contrapondo a narrativa de Trump.
*Enviado especial a Kuala Lumpur

