O novo Atlas da Violência 2025 mostra que o Brasil vive uma transformação na dinâmica da criminalidade. A violência letal, antes concentrada nas grandes metrópoles, tem se espalhado para cidades médias e pequenas, acompanhando a expansão territorial das facções criminosas. Segundo o estudo, essa “interiorização do crime” tem levado a uma expressiva redução, na última década, dos homicídios nas capitais mais violentas. Mas, em contrapartida, intensificou as disputas entre grupos criminosos em regiões como Norte e Nordeste.
Entre 2013 e 2023, cidades como Fortaleza, São Luís, Goiânia, Cuiabá e o Distrito Federal registraram quedas superiores a 60% nas taxas de homicídios. A melhora, no entanto, contrasta com a escalada da violência em municípios de porte médio, que passaram a presenciar disputas antes restritas às periferias das capitais.
Mesmo com essa redistribuição, o Atlas aponta continuidade na tendência nacional de queda nos homicídios, observada desde 2018. Em estados como São Paulo, o processo é ainda mais antigo: as mortes violentas vêm diminuindo de forma consistente há mais de 20 anos.
O levantamento — elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) — mostra que todas as unidades da Federação abrigam facções criminosas, embora com intensidades distintas. Nos estados onde há várias organizações, as disputas são mais letais. É o caso da Bahia, onde Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC) disputam espaço com grupos locais, como o Bonde do Maluco e o Comando da Paz.
Para a ex-presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-DF, Ana Izabel Alencar, a interiorização da violência está diretamente ligada à forma como as facções se estruturam e se expandem. “As facções, que são efetivamente quem compõem o crime organizado, são constituídas por pessoas de todos os estados. Muitas delas vêm do interior para as grandes capitais em busca de melhores condições de vida e, sem sucesso, acabam se rendendo ao crime organizado”, adverte.
Ana Izabel destaca, ainda, que esses grupos são “muito organizados e comandados por pessoas extremamente inteligentes, que aproveitam o conhecimento dos membros sobre suas cidades e se infiltram nos lugares menos prováveis, os interiores do Brasil, onde as polícias são menos preparadas e a população, mais vulnerável.”
A professora Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que o avanço das facções para cidades médias e pequenas não é resultado de um vácuo de poder, mas de uma reconfiguração política e territorial da economia criminosa. “Essa expansão segue a trilha histórica do jogo do bicho, estruturando alianças entre contravenção, elites locais e o Estado”, lembra.
Para Jacqueline, os interiores oferecem vantagens logísticas e políticas, como mercados ideais para lavagem de dinheiro e controle eleitoral de baixo custo. “O que ocorre não é uma interiorização do crime, mas da governança criminosa — um arranjo que combina economia ilegal, capital político e regulação armada em novas escalas territoriais”, resume.
Em Pernambuco, pelo menos 12 facções atuam em conflito aberto, impulsionando os índices de homicídio. Já Amazonas e Amapá registram confrontos entre CV, PCC e organizações regionais — como a Família Terror do Amapá e o Cartel do Norte —, que se expandem por cidades portuárias em áreas estratégicas.
Em contrapartida, há regiões em que prevalece uma relativa estabilidade. Em São Paulo, por exemplo, vigora o que os pesquisadores chamam de “pax monopolista”, uma espécie de paz imposta pelo domínio de uma única facção sobre o mercado ilegal. Situações semelhantes ocorrem em Minas Gerais, onde há fragmentação, mas menos conflitos abertos; e em Santa Catarina, onde o Primeiro Grupo Catarinense (PGC) atua de forma pontual.
O relatório também alerta para uma nova dimensão do crime organizado: a infiltração em atividades econômicas legais e na gestão pública. Segundo o Atlas, as facções vêm ampliando influência em setores produtivos e até em contratos administrativos, o que representa um risco direto ao Estado Democrático de Direito.
Apesar disso, o estudo identifica avanços em políticas públicas de segurança. Desde a década de 2010, mais estados e municípios têm investido em ações preventivas, qualificação policial e uso de inteligência integrada, o que ajuda a explicar a queda da letalidade.

