A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a autorizar o uso do Mounjaro (tirzepatida) no tratamento da apneia obstrutiva do sono em pessoas obesas e, por meio dessa norma, abriu espaço para que cirurgiões–dentistas, especialmente aqueles que atuam em odontologia do sono, possam prescrever o medicamento. Embora a medida esteja amparada pela Lei nº 5.081/66, que permite ao dentista indicar medicamentos relacionados à sua área de atuação, a mudança provocou intenso debate entre profissionais, que alertam para riscos, responsabilidades e possíveis excessos na prática clínica.
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O Conselho Federal de Odontologia (CFO) reconhece a prerrogativa legal da prescrição, mas reforça que a tirzepatida é um fármaco sistêmico de alto impacto metabólico, tradicionalmente usado no manejo de diabetes e obesidade. Por isso, apesar de a prescrição ser permitida quando vinculada ao tratamento odontológico da apneia, ela não deve ser tratada como autorização irrestrita. O CFO também afirma que o dentista deve estar capacitado para avaliar o quadro geral de saúde do paciente, entender as possíveis interações medicamentosas e atuar, preferencialmente, em conjunto com uma equipe multidisciplinar composta por médicos do sono, endocrinologistas e nutricionistas.
A preocupação central de especialistas envolve os riscos sistêmicos da tirzepatida, que incluem náuseas intensas, vômitos, alterações gastrointestinais, perda de peso acelerada, risco de pancreatite e impacto na glicemia. Pacientes obesos geralmente fazem uso de diversos medicamentos, o que aumenta a chance de interações que exigem preparo técnico aprofundado. Além disso, efeitos colaterais como desidratação, refluxo e vômitos podem repercutir diretamente na saúde bucal, causando boca seca, erosão dentária e maior vulnerabilidade a cáries.
Entre os profissionais que veem a liberação com cautela está a cirurgiã-dentista Rayane Tindo, que questiona a capacidade da categoria para lidar com um medicamento tão complexo. “A tirzepatida é um medicamento potente, com efeitos sistêmicos importantes. Não acredito que todos os dentistas estejam preparados para lidar com os riscos metabólicos e clínicos que ele envolve. O tratamento da apneia não pode ser reduzido a uma receita. É essencial que haja acompanhamento médico. Sem isso, a prescrição por dentistas se torna perigosa e pode comprometer a segurança do paciente”, afirma.
Para ela, o papel tradicional do dentista na apneia está relacionado ao uso de dispositivos intraorais e ao manejo das vias aéreas, e não ao controle metabólico de condições como obesidade ou resistência insulínica. “A indicação não pode ter finalidade puramente estética”, destaca.
Apesar de reconhecer a possibilidade de prescrição, Rayane defende limites claros. Segundo ela, a graduação em odontologia não oferece formação suficiente para o manejo de medicamentos de alta complexidade metabólica. A prescrição segura exigiria capacitação específica em odontologia do sono, domínio de farmacologia sistêmica e integração formal com médicos responsáveis pelo tratamento das condições gerais do paciente. A profissional também destaca o risco de banalização dessa prática, especialmente diante da popularização de medicamentos para perda de peso.
Para evitar isso, propõe protocolos rígidos, fiscalização ética e exigência de certificações complementares. “Também é importante ter uma atuação em contexto interdisciplinar, com médico responsável pelo quadro sistêmico. Auditoria e fiscalização ética, para coibir prescrição por fins estéticos ou de marketing”, reforça.
O CFO reforça que a autonomia do cirurgião-dentista deve vir acompanhada de responsabilidade ampliada. A entidade lembra que o Mounjaro é indicado exclusivamente para pacientes obesos com apneia e que essa condição, por si só, costuma vir acompanhada de comorbidades que exigem cuidado redobrado. “O cirurgião-dentista pode prescrever o Mounjaro, mas deve lembrar-se de que com grandes conquistas vêm grandes responsabilidades. É dever do profissional fazer o diagnóstico correto e a correta prescrição dos medicamentos”, afirma a conselheira federal Bianca Zambiasi.
O conselho também ressalta que a atuação isolada não é recomendada e que o acompanhamento multidisciplinar é a melhor forma de garantir segurança ao paciente.

