Houve um tempo em que os flamenguistas ficavam até ofendidos quando eram chamados de urubus. O “apelido” vinha com uma carga de insulto racista. Mas isso mudou, precisamente, no dia 1º de junho de 1969, quando quatro amigos rubro-negros calaram os rivais soltando, veja só, um urubu no estádio do Maracanã. Em tarde de clássico contra o Botafogo, a ave de rapina saiu voando, foi festejada pela torcida e levou “sorte” ao clube, que quebrou jejum de quatro anos sem vitórias sobre o alvinegro.
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Foi um episódio histórico na trajetória do Flamengo, time que completou 130 anos no último sábado, mas terminou em tragédia para o pássaro protagonista daquele domingo de Maracanã lotado.
“A imensa, ululante, indescritível torcida rubro-negra teve uma ideia genial. Minutos antes do clássico dos clássicos, vem, das gerais, um urubu com as cores flamengas. Foi um delírio”, escreveu o célebre dramaturgo Nelson Rodrigues na coluna que ele tinha no GLOBO, na época. “Durante toda a semana, o Salim Simão, botafoguense monumental, fez uma troça crudelíssima com o adversário. Que era o bom Flamengo para o bom Salim? O urubu. E as gerais rubro-negras, num lance admirável, transformaram a piada contra em piada a favor. E os alvinegros não puderam fazer o coro: ‘Urubu! Urubu! Urubu!'”.
Hoje, a atitude dos torcedores responsáveis por lançar a ave no Maraca seria um crime ambiental, já que estamos falando de um animal silvestre que não pode ser retirado de seu habitat, nem muito menos sofrer maus tratos. Mas, na época, com idades entre 18 e 20 anos, os amigos Victor Ellery, Romilson Meirelles, Luiz Octávio Vaz e Erick Soledade nem pensaram nisso. Foram eles os arquitetos do plano que consistia em capturar um urubu e mantê-lo em cativeiro até a hora da partida.
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Os quatro foram à Lagoa Rodrigo de Freitas, mas não viram nenhum exemplar da espécie dando pinta perto dos clubes Piraquê e Caiçaras. Então, o grupo foi ao antigo lixão do Caju, na Zona Norte, mas chegou tarde e não pôde nem entrar. Insistente, o quarteto voltou na manhã seguinte e achou vários urubus. Como não conseguiram apanhar um animal, convenceram um gari a ajudá-los, pagando cerca de R$ 60 em valores atuais. O servidor fez um laço numa corda e, sem demora, capturou um urubu.
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Com o bicho enrolado numa manta dentro do carro, os quatro flamenguistas voltavam pra casa com a sensação de dever cumprido e já falavam sobre a farra que seria soltá-lo no estádio. Mas, então, o quarteto foi surpreendido, no caminho, por uma tentativa de fuga. Com o carro parado em um sinal da Avenida Brasil, o urubu se soltou da manta e começou a bater as asas freneticamente dentro do veículo, batendo asas de um lado para outro e golpeando seus algozes. Foi um verdadeiro caos:
“Foi um desespero total. Eu estava dirigindo abaixado”, contou o torcedor Romilson Meirelles numa entrevista ao Blog do Acervo em 2019, quando o episódio estava completando 50 anos. “Depois de muito custo, conseguimos imobilizar o bicho. Levei algumas bicadas, e os outros três foram buscar uma sacola para colocar o urubu. Deve ter sido tudo bastante rápido, mas, como fiquei sozinho com ele dentro do carro, esse pouco tempo me pareceu uma eternidade”.
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O urubu passou a noite confinado em um apartamento no Leme, com a cabeça imobilizada para não bicar ninguém. Bastante debilitado, o animal recusou as opções do cardápio nada adequado oferecido pelo quarteto: macarrão e feijão com arroz. No dia do jogo, os rapazes amarraram uma bandeira do Flamengo com suporte de bambu nas patas do pássaro e entraram no estádio com ele dentro de uma sacola enrolada numa faixa. Qualquer defensor de animais ficaria horrorizado.
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Retirado da sacola, o urubu, uma fêmea, ainda estava atônito quando o quarteto decidiu soltá-lo em pleno estádio naquela tarde de domingo. Voou sobre a torcida do Botafogo, que, pega de surpresa, não reagiu. Já do lado do Flamengo, as arquibancadas vibravam gritando “É urubu, é urubu!”. Enfraquecido, e com o peso da bandeira, o animal não ficou no ar muito tempo. Pousou no gramado e se tornou a grande notícia do clássico, ofuscando até mesmo a estreia do atacante argentino Doval, o Diabo Loiro, contratado junto ao San Lorenzo, da Argentina, para ser a estrela rubro-negra da temporada.
Até aquele momento, o mascote do Flamengo era o marinheiro Popeye, uma herança do remo, esporte que deu origem ao clube. Mas a mudança estava em curso. No dia seguinte ao jogo, o GLOBO trazia a notícia: “Urubu pousa na sorte do Botafogo”. Nelson Rodrigues descreveu o episódio em sua coluna e, no Jornal dos Sports, o cartunista Henfil “humanizou” o bicho com uma charge. Em pouco tempo, o personagem do marujo americano havia sido substituído pelo pássaro de voo elegante.
Entretanto, enquanto a massa flamenguista abraçava o novo símbolo, o urubu capturado no lixão do Caju e solto no Maracanã, abandonado à própria sorte, agonizava. Ele foi encontrado sem vida no dia seguinte ao jogo. Dois dias depois de sua aclamada aparição, O GLOBO noticiava: “Urubu que a torcida elegeu não teve sorte: morreu de fome”. O corpo do animal foi achado pela equipe do jornal no fosso do Maracanã, depois de ter sido removido do banheiro por funcionários da Administração dos Estádios do Estado da Guanabara (ADEG). Uma veterinária relatou que o animal morrera de inanição.
“Quem realmente ficou triste foram os serventes do Maracanã, que ontem faziam a limpeza do estádio. Quase todos são torcedores do Flamengo, e gostariam que o novo símbolo da torcida ficasse vivo, para ser solto em triunfo diante da sede da Gávea, se o clube for campeão”, dizia o texto do jornal, na edição de 3 de junho de 1969. No domingo seguinte, outro grupo de torcedores levou um urubu para o estádio, durante uma partida contra o Vasco. Houve uma nova festa da torcida ao avistar o animal no gramado do Maracanã, o que consolidou a espécie como mascote do rubro-negro.
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