Como um decreto da ditadura levou à formação da facção

por Assessoria de Imprensa


O presídio da Ilha Grande, no Estado do Rio, foi cenário de uma carnificina nas primeiras horas do dia 17 de setembro de 1979. Naquela segunda-feira, um grupo de detentos armados com pedaços de madeira cheios de pregos e colheres raspadas transformadas em facas encurralou um bando rival dentro da penitenciária e assassinou seis presos adversários. A imprensa da época não deu muito destaque para essa chacina, mas o episódio pode ser considerado o ato de violência inaugural da facção criminosa Falange Vermelha, que depois mudaria seu nome para Comando Vermelho.

Mais de 45 anos depois, o Comando Vermelho é, hoje, uma das maiores organizações criminosas do Brasil. A facção domina mais da metade das áreas controladas por bandidos no Grande Rio e tem ramificações em ao menos 20 estados brasileiros. A megaoperação realizada nesta terça-feira pelas polícias Civil e Militar, que deixou mais de 60 mortos nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio, tinha como objetivo cumprir mandados de prisão contra integrantes do grupo. A ação mobilizou cerca de 2,5 mil agentes, apreendeu mais de 90 fuzis e prendeu ao menos 80 suspeitos.

Essa grande “corporação” do crime se apoia no tráfico de drogas e de armas, valendo-se do fracasso do Estado na área da segurança pública. Muitos governos falharam nas suas tentativas de desarticular o Comando Vermelho, cuja trajetória tem origem, justamente, em um ato da ditadura militar nos anos 1970 que promoveu a mistura de presos políticos daquele período com bandidos comuns.

O Instituto Penal Candido Mendes foi criado em 1963 em um complexo onde já existia, desde o início do século XX, a Colônia Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, em Angra dos Reis. Durante a ditadura, o governo militar começou a mandar para lá uma parte dos presos políticos enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN), que previa punição rigorosa para inimigos da “ordem político-social”. Era a época da luta armada, durante a qual guerrilheiros opositores do regime realizavam assaltos a banco para financiar suas ações rebeldes e sequestros para exigir a libertação de militantes capturados.

Cela lotada na Colônia Penal Cândido Mendes, antes de virar presídio, em 1961 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Cela lotada na Colônia Penal Cândido Mendes, antes de virar presídio, em 1961 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Até 1968, quando foi editado o Ato Institucional de número 5 (AI-5), que aboliu direitos individuais para facilitar a perseguição e a tortura estatais, havia 51 detentos na Ilha Grande. Segundo um artigo no site da Associação Nacional de História (Anpuh), em menos de um mês depois do AI-5, o Instituto Cândido Mendes recebeu mais 56 presos políticos. E, em maio de 1969, uma fuga em massa da Penitenciária Lemos Brito motivou a Secretaria de Segurança do Estado a transferir todos os internos da cadeia no Centro do Rio enquadrados na LSN para o xadrez da Ilha Grande.

As condições no presídio insular eram degradantes, os detentos comiam mal e não tinham acesso a itens básicos de higiene. Os presos políticos, que na maioria eram jovens escolarizados e moradores de grandes centros urbanos, começaram a se organizar ali dentro. Eles criaram uma despensa coletiva para reunir a comida levada pelos familiares e depois distribuir os alimentos igualmente entre todos. Organizaram também uma biblioteca, uma farmácia comunitária e elegeram um colegiado de presos pra representar o grupo na hora de discutir qualquer assunto com a diretoria da cadeia.

Quando queriam protestar contra alguma arbitrariedade, por exemplo, eles realizavam greves de fome que, com frequência, surtiam efeito.

Entretanto, o governo militar se recusava a reconhecer a existência de presos políticos no Brasil. Para os generais, guerrilheiros da luta armada eram criminosos comuns e não deviam receber tratamento diferenciado. Assim, em setembro de 1969, a ditadura editou o decreto-Lei n. 898, que modificou a Lei de Segurança Nacional (LSN) para enquadrar, nos termos da norma, qualquer pessoa que cometesse assaltos ou sequestros, mesmo sem motivação política. Foi depois disso que a penitenciária em Ilha Grande começou a receber assassinos e ladrões sem nenhum envolvimento com a luta armada.

Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, em 1976 — Foto: Eurico Dantas
Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, em 1976 — Foto: Eurico Dantas

O presídio era dividido em quatro galeras. Todos os detentos processados via LSN eram colocados na galeria B, também chamada de “galeria do fundão”. Como os presos políticos eram a maioria, eles conseguiram impor suas regras. Roubos e estupros, por exemplo, estavam proibidos. Dessa forma, a convivência lá dentro era relativamente pacífica. Mas havia uma carga de tensão e momentos de crise, como mostra o filme “Quase dois irmãos” (2004), de Lucia Murat. Em 1973, o furto de um relógio levou os presos políticos a levantar um muro feito de chapa de ferro separando-os dos demais.

O jornalista Fernando Gabeira, que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969, e o militante Colombo Vieira, que atuou no fracassado sequestro de um voo no Aeroporto do Galeão, em 1971, foram exemplos de guerrilheiros presos na Ilha Grande. Já o assaltante William da Silva Lima, chamado de Professor, que viria a se tornar um dos fundadores da Falange Vermelha, chegou na penitenciária em 1971, enquanto o ladrão de bancos Rogério Lemgruber, ídolo na fação, que chegou a ser chamada de Comando Vermelho Rogério Lemgruber, entrou na penitenciária em 1972.

O bandido Rogério Lembruger na prisão em 1987 — Foto: Manoel Soares
O bandido Rogério Lembruger na prisão em 1987 — Foto: Manoel Soares

Ainda na primeira metade da década de 1970, os presos políticos começaram a deixar a Ilha Grande, até que, em 1975, não havia mais nenhum deles lá. Só que ficou o legado daquele convívio. Os outros detentos enquadrados na LSN, criminosos comuns, aprenderam a se organizar para reivindicar seus direitos. Entenderam que, juntos, tinham força para negociar condições de salubridade mínimas para cumprir suas penas. Por outro lado, também tomaram ciência de que essa união ajudaria o seu grupo a se impor sobre os outros presos. Uma imposição na base da violência.

O primeiro nome da facção criminosa criada na Ilha Grande foi Falange LSN, em referência clara à lei que, modificada pela ditadura militar em 1969, misturou presos políticos a detentos comuns na cadeia insular. Depois, o nome foi trocado para Falange Vermelha. Em 1979, o grupo disputava poder no Instituto Penal Candido Mendes com a Falange Jacaré, reunia internos de outras galerias.

No dia 17 de setembro daquele ano, a facção criada na galeria do fundão realizou o ataque sangrento que matou os principais líderes rivais. Além dos seis assassinados naquele dia, outros viriam a morrer depois. Do lado de fora, a sociedade não ficou chocada com a notícia de presos se matando. Mas, a partir de então, o Estado perdeu em grande parte seu controle sobre detentos. Todos os criminosos enviados pra lá tinham que entrar para a Falange Vermelha ou seriam mortos. Assim, o Instituto Penal Cândido Mendes serviu não só de berço mas também de centro de recrutamento da facção.

As fugas constantes de presos da penitenciária levavam terror aos moradores da Ilha Grande. Casos de roubos, estupros e assassinatos na região se tornaram frequentes nos anos 1980. A população carcerária foi sendo reduzida até que o presídio foi desativado, em 1994. Mas, então, o Comando Vermelho já havia se estruturado do lado de fora das grades, realizando assaltos e controlando a venda de drogas em favelas e outras áreas de periferia onde os moradores, sem poder contar com o poder público, foram submetidos a uma espécie de estado paralelo.

Sigla do Comando Vermelho pintada em casa no Morro do Salgueiro, em 1992 — Foto: Chiquito Chaves
Sigla do Comando Vermelho pintada em casa no Morro do Salgueiro, em 1992 — Foto: Chiquito Chaves



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