A paraense Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam Amazônia), transforma décadas de trabalho pela preservação ambiental na construção de uma agenda em que o fogo se torna essencial para o combate à crise climática. Esta semana, foi reconhecida como uma das 20 cientistas brasileiras mais influentes do mundo, o que classifica como “um lembrete da responsabilidade que a ciência carrega diante dos desafios que vivemos principalmente nesses tempos de extremos climáticos”.
Ane é doutora em conservação de recursos naturais pela Universidade da Flórida e há 30 anos trabalha com temas relacionados à compreensão da dinâmica do fogo, desmatamento e degradação florestal nas regiões da Amazônia e do Cerrado e sua relação com as mudanças climáticas. Nesta entrevista ao Correio, ressalta os desafios mundiais que se impõem e a importância de países como os Estados Unidos e China se engajarem nas soluções, inclusive garantido o financiamento climático. “A prioridade mais urgente é reduzir drasticamente a queima de combustíveis fósseis, mas também sem esquecer do desmatamento. Sem isso, não há caminho possível para limitar o aquecimento global”, avalia. Leia a íntegra a seguir:
Como é para a senhora ser reconhecida internacionalmente como uma das 20 cientistas mais influentes do Brasil? O que essa honraria desperta?
Ser reconhecida internacionalmente como uma das cientistas mais influentes do Brasil é uma honra imensa, mas também um lembrete da responsabilidade que a ciência carrega diante dos desafios que vivemos principalmente nesses tempos de extremos climáticos. Esse reconhecimento não é apenas individual, ele reflete o esforço coletivo de pelo menos três décadas de trabalho e muitas parcerias entre pesquisadores, gestores, comunidades e instituições que, como o Ipam, se dedicam a entender e a proteger a Amazônia.
E pessoalmente?
Sinto uma renovação de propósito e reforça meu compromisso em produzir ciência acessível, que dialogue com a sociedade e que sirva para orientar políticas públicas, especialmente nas agendas de clima e conservação. Acredito que a ciência brasileira tem muito a contribuir para o mundo, e ser parte dessa construção é muito gratificante.
Olhando para trás, que momentos ou experiências marcaram mais a sua trajetória até chegar a esse ponto de destaque na ciência brasileira e mundial?
Olho para trás e vejo três momentos marcantes na minha trajetória ligados à agenda do clima e do fogo. O primeiro foi logo após me formar, em 1995, quando coordenei um grande levantamento sobre o uso do fogo no Arco do Desmatamento. Descobrimos que cerca da metade das queimadas era desnecessária, acidental ou criminosa, um resultado que subsidiou políticas públicas importantes da época.
O segundo momento foi durante as discussões sobre os grandes planos de infraestrutura e estradas na Amazônia, quando a ciência ajudou a embasar a criação de áreas protegidas que frearam a expansão do desmatamento e reduziram emissões na década de 2000. E o terceiro foi o lançamento do MapBiomas Fogo, em 2020, que nos permitiu, pela primeira vez, enxergar com clareza quanto o Brasil queima e como o fogo afeta nossos biomas, um marco fundamental para orientar políticas e ações de prevenção.
Na COP30, a senhora vai focar sua atuação no combate ao fogo nas florestas. Quais mensagens e ideias mais quer levar para esse espaço tão importante de diálogo global?
Na COP30, quero chamar atenção para o papel central do fogo na crise climática. O fogo deixou de ser apenas consequência do desmatamento e passou a ser um motor da degradação florestal, das emissões e dos impactos que exigem adaptação. É preciso colocá-lo no centro tanto da agenda de mitigação quanto da de adaptação, integrando manejo, prevenção e governança. O Brasil tem experiência e dados para liderar esse debate, principalmente no que diz respeito aos incêndios florestais em florestas tropicais uma nova ameaça em tempos de mudança do clima. Também quero destacar que os incêndios ameaçam as principais soluções baseadas na natureza pensadas nessa COP, como restauração, REDD e pagamento por serviços ambientais, e impõem perdas e danos às populações mais vulneráveis.
A senhora nasceu no Pará e tem raízes amazônidas. De que maneira essa ligação com a floresta moldou sua forma de ver o mundo e influenciou a escolha pela ciência e pela defesa da Amazônia?
Nascer no Pará e crescer cercada pela Amazônia me deu uma compreensão muito concreta de como a floresta, as pessoas e o clima estão conectados. Essa vivência moldou meu olhar para o mundo e me fez entender que a ciência pode e deve servir à proteção do lugar de onde viemos. Ver de perto as transformações da paisagem e as desigualdades da região me motivou a buscar respostas e soluções pela pesquisa. Por isso, minha trajetória sempre foi guiada pelo compromisso de unir conhecimento científico, políticas públicas e saberes locais para garantir um futuro justo e sustentável para a Amazônia e para os Amazônidas
A senhora mora em Brasília há 15 anos, convive com a realidade do Cerrado diariamente, acredita que o bioma deveria entrar na pauta da COP30?
Sem dúvida. O Cerrado precisa estar na pauta da COP30, porque é o coração hídrico do Brasil e a savana mais biodiversa do planeta. Ele alimenta os principais rios que sustentam a Amazônia, o Pantanal, o Nordeste e o Sudeste, e, ao mesmo tempo, é o bioma que mais perde vegetação nativa. As emissões por desmatamento no Cerrado são enormes e ainda pouco discutidas e o regime de fogo do Cerrado tem sido alterado não somente pela ação humana mas pelas mudanças climaticas. Se queremos cumprir nossas metas climáticas, precisamos olhar para o Cerrado com a mesma urgência e ambição dedicadas à Amazônia, reconhecendo seu papel essencial para a segurança hídrica, alimentar e climática do país.
Quando pensa nos desafios ambientais que o planeta enfrenta, quais soluções a senhora acredita que são mais urgentes e possíveis de colocar em prática agora?
A prioridade mais urgente é reduzir drasticamente a queima de combustíveis fósseis, mas também sem esquecer do desmatamento. Sem isso, não há caminho possível para limitar o aquecimento global. Precisamos acelerar a transição energética, substituindo fontes fósseis por renováveis, e ao mesmo tempo frear a perda de florestas, que são nossos maiores aliados no sequestro e armazenamento de carbono. No caso do Brasil, isso significa também controlar os incêndios e a degradação, que ampliam as emissões e comprometem os avanços na agenda de florestas. São medidas tecnicamente viáveis e possíveis, mas exigem muito comprometimento, vontade política, e coordenação para se tornarem realidade.
A bioeconomia é vista como um caminho promissor para o desenvolvimento sustentável. O que esse conceito significa para a senhora e como ele pode transformar a vida das pessoas na Amazônia?
A bioeconomia, que para mim deveria ser a sociobioeconomia, representa um novo modelo de desenvolvimento baseado na diversidade produtiva, biológica e cultural da Amazônia. É uma economia que valoriza a Amazônia pelo que ela é: diversa, viva e criativa. Conecta o conhecimento científico e o saber tradicional para gerar renda, autonomia e conservação, fortalecendo uma diversidade de cadeias produtivas que vão de alimentos a fármacos, de cosméticos a pagamentos por serviços ambientais. Quando reconhecemos que a floresta em pé sustenta múltiplas formas de vida e de produção, promovemos uma economia que une justiça social, inclusão e respeito à natureza e às culturas locais, um caminho real para o desenvolvimento sustentável da região.
Como enxerga o mecanismo REDD , que busca recompensar financeiramente os países em desenvolvimento pela redução das emissões de gases de efeito estufa? Ele tem funcionado como deveria?
O REDD é um mecanismo fundamental para valorizar a floresta em pé, pois recompensa financeiramente os esforços de redução do desmatamento e da degradação, reconhecendo o valor do carbono que permanece estocado quando a floresta é conservada. É uma forma de pagar pela performance ambiental, pelo desmatamento evitado. No Brasil, temos bons exemplos inspirados nessa lógica, como o Fundo Amazônia, e iniciativas de REDD jurisdicional em alguns estados da Amazônia Legal. No entanto, os avanços ainda são lentos, principalmente devido a desafios de governança, de escala e de efetiva distribuição dos recursos até quem está no território. Sem dúvida, o REDD é um instrumento importante para incentivar a conservação florestal, mas não é, e nem deve ser visto como, uma solução isolada. Para que cumpra seu papel, precisa garantir transparência, integridade ambiental, valorização dos esforços nacionais e, sobretudo, acesso direto dos povos da floresta e comunidades locais aos benefícios.
E o TFFF — o Fundo Florestas Tropicais para Sempre — proposto pelo governo brasileiro, pode realmente fazer diferença na preservação das florestas?
Diferente e complementar ao REDD , o TFFF tem potencial para ser um verdadeiro divisor de águas, desde que consiga alinhar ambição climática, governança sólida e participação social, garantindo que os recursos cheguem efetivamente a quem conserva. É um fundo que reconhece as florestas tropicais como bens públicos globais e propõe um modelo de financiamento perene, algo que o mundo ainda não conseguiu consolidar. Mas seu maior desafio será justamente viabilizar um fluxo financeiro dedicado à conservação das florestas em um contexto em que todos os países buscam recursos para suas próprias transições e em meio a uma crise do multilateralismo que tem levado as nações a olhar cada vez mais para dentro. Por isso, é fundamental que o TFFF tenha regras claras, governança robusta e transparência, além de incluir quem vive e protege as florestas. Se bem implementado, pode se tornar uma referência mundial de cooperação pela biodiversidade e pelo clima.
A senhora acredita que os países industrializados estão, de fato, dispostos a aderir e contribuir de forma justa com iniciativas como essa?
Infelizmente, ainda há uma distância grande entre o discurso e a prática. Muitos países desenvolvidos reconhecem a urgência da crise climática, mas continuam postergando compromissos financeiros ou substituindo doações por empréstimos. A justiça climática exige que os países que mais emitiram assumam sua responsabilidade histórica com contribuições previsíveis, novas e adicionais. Sem isso, os mecanismos de cooperação, como o TFFF por exemplo, perdem força e perpetuam desigualdades. Mas isso não significa que não tenhamos que fazer nossa parte também.
Como a ausência dos EUA impacta no cumprimento das metas do Acordo de Paris??
Os Estados Unidos têm um papel central na governança climática global, tanto pelo peso de suas emissões históricas, são o segundo maior emissor de gases que aquecem o planeta, quanto pela capacidade de mobilizar recursos e influenciar outros países. Quando se ausentam ou reduzem seu engajamento, enfraquecem o espírito coletivo do Acordo de Paris e diminuem a confiança nas negociações. Ainda assim, outras potências seguem impulsionando a agenda, como a China, hoje o maior emissor global, que tem avançado em suas metas de redução e liderado transformações importantes, especialmente no setor de transportes com base em energia renovável. É claro que o mundo seria mais forte com os EUA plenamente engajados nesse debate que diz respeito a todos, inclusive a eles próprios. A transição climática só será possível se todos embarcarem juntos: governos, setor privado e sociedade civil. Essa mobilização ampla é o que tem mantido o movimento global vivo, apesar das lacunas políticas.
Diante das tragédias ambientais cada vez mais frequentes, que ações ou prioridades a senhora considera essenciais para reduzir esses impactos e proteger as populações mais vulneráveis?
Precisamos fortalecer a adaptação como prioridade política e financeira, não como coadjuvante. Vimos o que aconteceu no ano passado com enchentes no Rio Grande do Sul e seca severa na Amazônia, além de incêndios em vários biomas brasileiros. Tem que se preparar cada vez mais para responder a essas crises. Isso significa investir em prevenção, sistemas de alerta, planejamento territorial e políticas que reduzam a vulnerabilidade social e ambiental. As populações mais afetadas, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares, moradores das periferias das grandes cidades, precisam estar engajados e devem também ser vistas como protagonistas da solução, não apenas vítimas. Garantir seus direitos territoriais, ampliar o acesso à informação e integrar conhecimento local e científico são passos fundamentais para salvar vidas e fortalecer a resiliência.
A senhora pesquisa dois biomas fundamentais — o Cerrado e a Amazônia. Quais têm sido os maiores desafios que eles enfrentam hoje?
A Amazônia enfrenta o risco de ultrapassar pontos de não retorno por conta do desmatamento, do fogo recorrente e das mudanças climáticas que reduzem a umidade e alteram o regime de chuvas e a inflamabilidade dos ecossistemas. O Cerrado, por sua vez, sofre uma conversão acelerada em pastos e lavouras, com impactos diretos na água e na biodiversidade. Ambos vivem processos de degradação que ameaçam o equilíbrio climático do país. O desafio é conter essa trajetória e implementar uma transição para o uso sustentável da terra que garanta produção, conservação e justiça social.
E quando olhamos para outros biomas brasileiros — como a Caatinga, o Pantanal e a Mata Atlântica — que questões mais urgentes precisam entrar na pauta do país?
Cada bioma expressa uma face do Brasil e todos merecem atenção. O Pantanal sofre com a intensificação das secas e incêndios, apesar deste ano estar mais úmido claramente tem perdido muito da superfície da água nos últimos 40 anos de acordo com o Mapbiomas; a Caatinga, com a desertificação e a escassez hídrica; e a Mata Atlântica ainda luta pela restauração de sua cobertura original. É urgente adotar uma política integrada de conservação e adaptação que reconheça a interdependência entre os biomas, fortaleça o monitoramento, o manejo do fogo e a recuperação de ecossistemas, assegurando que nenhum território fique invisível na agenda climática nacional.
O que foi essencial na sua carreira para chegar nesse lugar de destaque?
Acredito que a curiosidade, a persistência e a colaboração foram essenciais. Como amazônida, sempre procurei unir paixão pelo local onde nasci e me criei, com rigor científico e compromisso social. Trabalhar com equipes diversas, integrar dados e experiências de campo e ouvir as comunidades me ensinou que ciência se faz com empatia e propósito. Nada foi conquistado sozinha, é o resultado de uma rede de pessoas que acreditam que proteger a floresta é também cuidar do nosso futuro coletivo.
O Brasil valoriza as cientistas brasileiras em igualdade de condições?
Avançamos muito, mas ainda há desigualdades significativas. As mulheres seguem enfrentando mais barreiras para ocupar posições de liderança e, muitas vezes, precisam provar continuamente sua competência, sobretudo aquelas que vêm do Norte e atuam em áreas que, há trinta anos, eram quase exclusivamente masculinas, como o sensoriamento remoto. Mesmo assim, vejo uma geração inspiradora de cientistas brasileiras transformando esse cenário, especialmente nas ciências socioambientais. Na minha própria área, que investiga os efeitos das mudanças climáticas e do uso da terra sobre os incêndios florestais, há um grupo incrível de mulheres, verdadeiras cientistas do fogo, fazendo um trabalho de excelência. Isso me enche de alegria e esperança. Valorizar essas trajetórias é essencial não apenas por uma questão de equidade, mas porque a diversidade de vozes e olhares enriquece a própria ciência e a aproxima ainda mais da sociedade.
A senhora se dedicou à academia, tem formação em universidades nacionais e internacionais. O que sugeria a jovens mulheres que estão começando?
Diria para manterem a curiosidade viva, ela é o que nos move sempre. Nunca duvidem do próprio potencial, especialmente quando a vontade de aprender e transformar o mundo vem de dentro. Busquem apoio em redes de colaboração e não acreditem que precisam fazer tudo sozinhas: a parceria é uma das maiores forças da vida. Trabalhar com pessoas diversas é uma oportunidade de troca e aprendizado que amplia nossos horizontes e enriquece a ciência. Ela pode ser desafiadora, mas também profundamente transformadora. Quando fazemos ciência com sentido e em coletivo, conectada às pessoas, à natureza e ao bem comum, abrimos caminhos não apenas para nós, mas para todas que virão depois. Eu mesma, neta de ribeirinha, criada em um bairro periférico de Belém e formada em uma universidade pública, aprendi que o essencial é seguir aprendendo, colaborando e usando a ciência como instrumento de transformação. É isso que me move todos os dias, contribuir para um futuro melhor para nós e para o planeta que compartilhamos.

