Nia DaCosta manteve a calma. Ela tinha apenas uma noite para filmar cenas em um labirinto por onde os personagens de seu drama, “Hedda”, correm, conspiram, fazem sexo e juram vingança. Mas alguém no set, em Nottinghamshire, Inglaterra, cortou um cabo por engano, e o complexo sistema de iluminação parou de funcionar.
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— Era plena madrugada, no meio do campo, sem nenhuma solução óbvia — disse Nina Hoss, uma das estrelas do filme, que está no Amazon Prime Video. — Se eu fosse a diretora, estaria berrando: O dinheiro! O tempo! Mas ela fez piadas; os técnicos de iluminação encontraram alguns refletores; todos jogamos cartas para nos manter acordados e, então, filmamos as cenas. Nia sabe comandar um set.
Faz apenas sete anos que DaCosta, de 35 anos, estreou na direção com “Little Woods”, a história de duas irmãs do Dakota do Norte que lutam para sobreviver e se veem diante de escolhas impossíveis.
— Depois, pensei: nunca mais vou trabalhar — disse DaCosta, rindo.
Primeiro veio “Candyman”, releitura do filme de terror de 1992. Em seguida, DaCosta se tornou a primeira diretora negra contratada pela Marvel Studios, para o filme “The Marvels”, estrelado por mulheres. E desde que escreveu e dirigiu “Hedda”, baseado na peça seminal de Henrik Ibsen de 1891, “Hedda Gabler”, ela fez a sequência de terror “28 Years Later: The Bone Temple”, com estreia prevista para janeiro.
Então: realismo indie cru, terror, super-heróis, suspense psicológico de época, violência pós-apocalíptica. Existe um fio condutor?
— Tenho muito interesse em pessoas, principalmente mulheres que fazem coisas não convencionais, e me sinto atraída por pessoas que vivem à margem da sociedade — disse DaCosta em uma entrevista recente em Londres. — E tenho um grande interesse na ideia de liberdade: à custa de quem você desfruta da sua liberdade pessoal?
Essa é uma questão importante em “Hedda”, uma suntuosa releitura que transporta o clássico de uma sala de estar de uma vila na Noruega do fim do século XIX para uma grande propriedade rural na Inglaterra dos anos 1950, com uma personagem principal birracial e bissexual (interpretada por Thompson) determinada a tecer uma teia de enganos, sedução e destruição.
A grande sacada de DaCosta é transformar o antigo amante de Hedda, o alcoólatra Eilert Lovborg, em uma mulher, Eileen Lovborg (Hoss), cujo anúncio de que comparecerá a uma festa oferecida por Hedda e seu marido, George Tesman (Tom Bateman), desencadeia uma série de eventos catastróficos.
Os Tesmans estão endividados, e o estilo de vida luxuoso que Hedda deseja permanece fora de alcance, a menos que George consiga um cargo lucrativo em uma universidade. Mas essa vaga provavelmente ficará com Eileen, que está prestes a publicar um manuscrito inovador, o qual ela leva para a festa. (O que poderia dar errado?) Também na trama está Thea (Imogen Poots), que deixou o marido por Eileen, recém-sóbria.
— Parte da razão pela qual transformei Lovborg em mulher é que eu não queria aliviar muito a barra para Hedda — disse DaCosta. — Sim, ela está presa nesta casa, casada com um homem que não ama; está grávida, talvez, e, por isso, faz coisas horríveis. Mas me interessa como ela também se limitou. Há Eileen, que fez escolhas corajosas para viver do jeito que quer. Há Thea, que deixou o marido. Essas são coisas que Hedda não pode fazer.
DaCosta disse que ambientou a história na Inglaterra dos anos 1950 por causa de seu interesse no período pós-guerra:
— Havia um impulso de voltar ao jeito que as coisas eram. Mulheres fora do mercado de trabalho e de volta para casa; homens, traumatizados em massa, de volta aos papéis que deveriam desempenhar. É um contexto em que todos sofrem; todos fingem.
O filme dá mais destaque à identidade sexual de Hedda do que à sua raça, algo que DaCosta disse querer como “um elemento de quem ela é”, e não como motor da trama.
— Ela é isolada, ainda mais por causa de sua raça — disse DaCosta. — Na única vez em que ela menciona isso, Eileen diz: “Tanto faz”. Pareceu-me mais impactante ser realista sobre a maneira como as pessoas ignoram ou não conseguem falar sobre esses aspectos da identidade.
A própria DaCosta foi criada no Harlem, em Nova York, por sua mãe, Charmaine DaCosta, cantora do grupo Worl-A-Girl, que levava seus dois filhos para aulas de balé, óperas, peças de teatro e performances artísticas.
— Minha mãe tinha muita consciência de como era fácil para meninas negras se sentirem feias, burras ou acreditarem na ideia de que somos preguiçosas. Ela fez questão de que eu soubesse que beleza não é uma coisa só.
Seu amor pelo cinema floresceu cedo.
— Eu era uma criança que ficava sozinha em casa depois da escola, e assistia a filmes como “Nascido para matar” e “Apocalypse Now”. Mas não sabia o que eu amava naquilo, então pensava que queria ser atriz. Minha mãe dizia: “Não, você é escritora; você é sensível. Acho que você quer ser diretora”.
DaCosta estudou cinema na Universidade de Nova York e, em seguida, se candidatou a programas na Inglaterra, onde seu pai nasceu:
— Aqui, percebi a importância da técnica e me apaixonei pelo teatro. Foi um despertar completo.
De volta a Nova York, trabalhou em programas de reality show como “Kesha: My Crazy Beautiful Life” e na série “Vinyl”, de Martin Scorsese. Enquanto trabalhava, escrevia roteiros e se inscrevia no Laboratório de Diretores e Roteiristas do Instituto Sundance, onde, em 2015, conheceu “diretores incríveis”:
— Robert Redford estava lá. Minha cabeça dava voltas — disse.

