Sob o viaduto que há décadas pulsa ao som do samba, do jongo e do charme, Madureira se prepara para uma grande celebração da cultura negra. Entre a próxima quinta-feira (20) — feriado da Consciência Negra — e sábado, o bairro recebe a quarta edição do Festival Madureira, evento gratuito que reúne artistas locais e nomes consagrados da música e da dança para marcar a data.
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— Madureira é a síntese da cultura afro-carioca. Fazer o festival neste período é reafirmar nossa luta antirracista e valorizar a contribuição do povo negro para a identidade cultural do Brasil — diz o músico e jongueiro Marcos André Carvalho, um dos organizadores do evento.
A programação combina música, jongo, dança e economia criativa, com apresentações de Awure, Companhia de Aruanda da Serrinha, bateria do Império Serrano e Agbara Dudu e o tradicional Baile Charme do Viaduto. O evento também comemora os 15 anos da Companhia de Aruanda, referência no jongo da Serrinha, e promete transformar a região em um grande ponto de encontro da cultura afro-brasileira.
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Mas a festa embaixo do viaduto não será apenas musical. Este ano, o Festival Madureira se une à Flup — Festa Literária das Periferias, que pela primeira vez ocupa o bairro com uma programação que mistura literatura, performance, música e memória.
De quarta-feira a domingo, e novamente entre os próximos dias 27 e 30, a Flup 2025 homenageia a escritora Conceição Evaristo, primeira autora viva a receber a distinção do evento. Reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio, a Flup chega à nova edição com o tema “Ideias para reencantar o mundo”, propondo um mergulho nas conexões entre palavra, corpo e território.
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O festival literário reunirá nomes do Brasil, da África, do Caribe, da América do Norte e da Europa — entre eles Michelle Alexander, Ana Maria Gonçalves, Mireille Fanon Mendès-France, Eliana Alves Cruz e Steve McQueen — para debater arte, ancestralidade e justiça social.
Além dos debates e oficinas, a programação contará com shows de Sandra Sá, Mano Brown, Luedji Luna, Jonathan Ferr, Mart’nália e Majur, reforçando a conexão entre literatura e música negra. A agenda também terá atrações na Central Única das Favelas (Cufa) e no bar Zê êne, ambos em Madureira.
Para o curador Julio Ludemir, levar a Flup ao bairro é um gesto simbólico de retorno às origens da cultura popular carioca.
— Madureira é o coração cultural do Rio, o berço do samba, do jongo e do charme. É um lugar onde se vê gente na rua, onde ainda se ouve o camelô gritando. É um território vivo, que resiste à lógica do isolamento e do comércio on-line. Quem se interessa por gente se interessa por Madureira. A Flup sempre acreditou nesse diálogo entre as artes e o povo. Estar aqui é reconhecer essa força, essa energia que mantém a cultura viva — afirma.
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A união entre os dois eventos surgiu de forma natural.
— Quando percebemos que a Flup seria realizada nas mesmas datas, vimos que era uma oportunidade de juntar forças e ampliar o impacto. É relevante chegar a Madureira com Michelle Alexander, Ananda Devi e Mano Brown, artistas periféricos mas já consolidados no mainstream. Quando mostramos a pujança dessas periferias globais ou transatlânticas, corremos o risco de esquecer a produção local, de não dialogar com o fazer local. A parceria com o Festival Madureira permite estar ali junto com a bateria da Portela, com o jongo, com o Império Serrano, com Quitéria, a rainha de bateria. Existe ali uma expressão local muito pujante, e isso é fundamental.
Ludemir lembra que a dobradinha começou quando Marcos André, “parceiro de longa data”, procurou o DJ Michel, do Baile Charme, e Michel apresentou aos organizadores da Flup a proposta do Festival Madureira.
— Sorrimos, acolhemos e entendemos que nosso festival seria ainda melhor. Ele supriria uma lacuna no diálogo com as expressões locais, algo que espero que esteja entronizado em nossa curadoria daqui para a frente — diz.
Para ele, a Flup é também uma ferramenta de resistência e reconstrução da memória negra na literatura brasileira. Ludemir conta que, apesar de a tradição literária do país ter sido inaugurada por autores como Paula Brito, Machado de Assis, Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis, os escritores negros foram historicamente invisibilizados após a abolição.
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— A indústria do livro foi tão excludente e racista quanto as demais indústrias culturais brasileiras. Isso começa a mudar com as políticas afirmativas, que transformaram o mercado editorial — afirma.
Segundo o curador, obras como “Na minha pele”, de Lázaro Ramos, ajudaram a abrir caminhos para uma nova geração de autores, entre eles Djamila Ribeiro, Geovani Martins, Jefferson Tenório, Itamar Vieira Junior e Ana Maria Gonçalves.
— Nenhum autor negro existe sozinho. Há toda uma rede de leitores, editores, críticos e festivais negros sustentando esse ecossistema. A literatura, como o samba e o poetry slam, é também uma forma de resistência — conclui.
Feira Crespa e grande roda de jongo movimentam o festival
Criado em 2018, o Festival Madureira surgiu da articulação entre grupos culturais do bairro que buscavam fortalecer a cena local e abrir novas oportunidades para artistas e produtores. Dessa união foi criada a Rede Madureira, que logo no primeiro ano implantou uma incubadora de projetos locais. Desde então, consolidou-se como um dos principais eventos dedicados à valorização da cultura negra no Rio.
— A criação do festival foi um desdobramento do movimento cultural que já existia aqui, uma vitrine para mostrar a potência de Madureira e abrir mercado para os nossos grupos — explica o músico e jongueiro Marcos André Carvalho. — Aqui, o jongo e o samba convivem com o charme, a dança de rua e o hip-hop. É um território que reflete o que o Brasil tem de mais diverso.
Além das apresentações musicais e de dança, o evento promove a Feira Crespa, voltada à economia criativa e ao empreendedorismo negro, com expositores de moda, gastronomia, arte e beleza. A feira reforça o papel do festival como espaço de circulação de saberes e fortalecimento das redes comunitárias do subúrbio.
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Carvalho destaca o impacto econômico e simbólico do projeto:
— O festival gera trabalho, renda e autoestima. São cerca de 300 artistas e produtores contratados, todos da cadeia cultural local. É um movimento que mostra a força da cultura suburbana como motor de desenvolvimento.
Este ano, o festival será realizado pela primeira vez ao ar livre, sob o Viaduto de Madureira, em um formato que, segundo Carvalho, torna-o mais democrático:
— Realizar o evento debaixo do viaduto, esse solo sagrado, torna tudo mais potente. A experiência vai ser única, ainda mais com a Flup acontecendo junto.
Rodrigo Nunes, coordenador da Companhia de Aruanda, ressalta o simbolismo de se apresentar no bairro:
— Madureira é um solo sagrado, um quilombo urbano. Eu nasci na Serrinha, sou cria do jongo e discípulo do Mestre Darcy. Nossa companhia nasceu para difundir as tradições negras e celebrar essa convivência entre o antigo e o novo. Em Madureira, o jongo dialoga com o charme, o samba com o hip-hop. As inovações mais fortes são as que tomam impulso nas tradições.
Segundo ele, a abertura do festival será marcada por uma grande roda de jongo que celebra os 15 anos da companhia.
— É uma coincidência simbólica: o aniversário da roda cai justamente no Dia de Zumbi, durante a Flup e na abertura do festival. Vamos reunir oito grupos de jongo para uma grande celebração — antecipa.

