‘GPS ocidental não resolve conflito em Gaza’, diz ex-embaixador brasileiro na Palestina que lança livro de memórias sobre o período

por Assessoria de Imprensa


Ex-embaixador do Brasil junto à Autoridade Nacional Palestina (ANP) e atual cônsul-geral em Lisboa, Alessandro Candeas, de 59 anos, decidiu reunir no livro “Peregrinação e Guerra — Anotações de um Diplomata na Terra Santa” (Editora Contratempo) tudo o que viu no período à frente da representação em Ramallah, entre 2020 e 2024, na Cisjordânia ocupada. Do início do conflito entre Israel e Hamas ao maior resgate de brasileiros da História, com a escalada das tensões, o diplomata de carreira viveu o bastante para afirmar — apenas na condição de observador externo, não mais como chefe do posto, ponderou — que o cessar-fogo “não significa paz” e que a solução para a região tem que vir “de dentro para fora” e passa necessariamente pela autodeterminação do povo palestino.

A partir da experiência do senhor no terreno, quais são hoje as condições mínimas para um cessar-fogo sustentável e duradouro em Gaza, sobretudo em relação a desarmamento, retirada das forças israelenses e mecanismos que assegurem o seu cumprimento?

O cessar-fogo [nos moldes em que foi estabelecido] não significa paz. As causas do conflito são estruturais, históricas, políticas, e permanecem sem solução. A segurança em Gaza não foi estabelecida, já que a violência interna persiste e o desarmamento é muito difícil. A questão dos refugiados — aqueles que foram expulsos durante e após o estabelecimento de Israel, em 1948, e hoje constituem a população do enclave — embora pouco comentada, também preocupa, assim como a necessidade de autonomia e estabilidade político-econômica do povo palestino. Sem contar que o armistício veio dois anos depois da proposta apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, com um saldo em torno de 70 mil mortos. Houve uma hecatombe humanitária em Gaza. A guerra foi de tal dimensão, que, agora, é impossível falar em paz.

Qual é, então, o caminho possível para a paz futura — e como equilibrar a segurança de Israel com a proteção dos civis palestinos, por exemplo?

Enquanto o povo palestino não puder exercer seu direito de autodeterminação, não haverá paz. A segurança de Israel passa pela segurança dos palestinos. Na medida em que os palestinos sofrem violências, são impedidos de circular no próprio território e vivem sem perspectivas, isso alimenta insatisfação e radicalização. Esse é o caldo no qual o extremismo se reproduz.

Sobre uma eventual governança pós-guerra, qual é o modelo mais realista no curto e médio prazo: retorno da ANP, administração internacional transitória ou uma solução híbrida com atores regionais e locais?

A ANP é uma instância legítima. Mais de 140 países aprovaram recentemente a sua participação na Assembleia Geral das Nações Unidas. Não há outra alternativa. Defendo ainda a importância de novas eleições, visto que a última foi em 2006. A Palestina tem uma vocação democrática, e isso precisa ser respeitado.

Quando se fala na pacificação de Gaza, o Ocidente costuma apresentar modelos prontos. Há um risco nisso?

A paz ali não pode ser imposta. É um processo de dentro para fora. O GPS ocidental não funciona para solucionar esse conflito. Existe a Terra Santa imaginada pelo Ocidente e a concreta. As fórmulas importadas, mesmo que bem-intencionadas, não capturam a realidade, nem as dinâmicas internas. Há que se ouvir os atores locais, fortalecer a sociedade civil e permitir que os palestinos e israelenses moderados construam caminhos próprios.

O senhor acredita que existam esses perfis moderados capazes de liderar a região?

Sim. Há lideranças moderadas, com representatividade local, e até legitimidade internacional, que querem a paz e seriam capazes de fazê-la. Mas um dos produtos maléficos da guerra é a inviabilização desses nomes. São líderes que podem construir pontes entre todos os grupos que compõem o território palestino e acabam silenciados pelo conflito. Sempre que há medo, discursos extremistas ganham mais espaço.

Qual foi o momento mais marcante que o senhor viveu como embaixador na região?

A operação para repatriar os brasileiros. Nunca quis ler a manchete: “Brasileiros morrem em Gaza.” E fizemos de tudo para que ela nunca existisse. Não se improvisa uma ação humanitária. Todas as embaixadas têm um plano de contingência. Quando o conflito eclodiu, tínhamos toda a estratégia de deslocamento e retirada das pessoas. Foi o maior resgate aéreo da História, com 1.592 repatriados. A minha experiência anterior, como chefe de Gabinete do Ministério da Defesa, lidando com questões militares, também permitiu um olhar de proteção dos nacionais.

No livro, o senhor retrata Jerusalém como um lugar em que o divino convive com as “sombras humanas” e afirma ter voltado “mais humano do que espiritual”. Como essa vivência o transformou?

Cheguei à Terra Santa esperando uma peregrinação espiritual, além da atividade diplomática, e encontrei uma realidade de tolerância e harmonia entre as religiões e também dos conflitos que se dão por conta delas. A dimensão humana se impõe. E costumo dizer que a primeira vítima da guerra não é a verdade — é a desumanização. A paz começa quando reconhecemos o outro como pessoa, antes de qualquer abstração, como a religião, o Estado ou a ideia. É sobre exercitar um olhar a partir das necessidades e das dores de uma pessoa. Um dos esforços dos agentes do conflito é negar que o outro sofre.

Depois de viver a guerra tão de perto, o senhor ainda acredita na possibilidade de reconciliação entre israelenses e palestinos?

Vi sinais concretos disso. Conheci famílias, sobretudo mães israelenses e palestinas, que perderam seus filhos nos conflitos e, mesmo assim, se sentam para conversar e trabalhar pela paz. Ex-combatentes de ambos os lados que decidiram ir de encontro e fazer da guerra o principal rival. Essas pontes existem.



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