O depoimento de pai de jovem de 14 anos morto em operação contra Comando Vermelho: ‘Ele se iludiu’

por Assessoria de Imprensa


Quando Samuel Peçanha viu, pelas redes sociais, a foto do corpo de um jovem rapaz sem vida na Mata da Misericórdia, zona Norte do Rio de Janeiro, ele disse que sentiu na hora: era o seu filho.

“Naquele momento, me veio uma ardência, um aperto… eu falei: perdi meu filho. Quando vi a foto — aquela foto tirada lá na montanha — e reconheci o meu menino no chão, eu disse: é ele. É o meu menino.”

“Ele parecia estar dormindo. Do jeito que estava deitado na mata, era como dormia em casa: as duas mãozinhas atrás da cabeça, tranquilo. Ver aquilo… me feriu.”

Michel tinha 14 anos e era o mais novo dos cinco filhos de Samuel.

“Era um garoto tranquilo. Dentro de casa, só queria dançar e brincar. Uma criança normal, que adorava danone e biscoito Piraquê.”

“Tenho 56 anos — ele era o ‘filho da minha velhice’, aquele que a gente se apega, por quem trabalha dia e noite.”

No dia 28 de outubro, Michel foi uma das 121 pessoas mortas na operação mais letal da história do Brasil, na área do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro — a cerca de 40 quilômetros das casas de seu pai e de sua mãe.

Samuel, trabalhador de serviços gerais, conversou com a reportagem da BBC News Brasil uma semana após a operação. Ele conta que nunca morou ou mesmo esteve no Complexo da Penha, e que se inteirou recentemente sobre o envolvimento de Michel nas atividades da facção criminosa Comando Vermelho.

“Ele morava com a mãe, no mesmo município que eu, e veio para a minha casa há três meses.”

O pai descreve que pagava a pensão e cumpria com suas obrigações, convivendo constantemente com Michel, mas sem acompanhar tão de perto sua rotina.

Morando sob o mesmo teto, passou a observar mais o menino e descobriu que ele tinha parado de ir à escola e encontrou suas redes sociais, onde viu fotos de Michel segurando armas e andando de moto.

“Fiquei totalmente assustado, e ali percebi que ele se iludiu. Falei: ‘Filho, pra que você está tirando foto com arma? Pra que está tirando foto em certos locais?’ Ele dizia: “Não, pai, é só por que eu vou no baile com os garotos, conheço um montão de gente…”

“No primeiro mês que morou comigo, em duas semanas ele saiu e passou quatro dias fora. Ele não chegava com dinheiro, nem com nada. Tudo que ele tinha aqui era comprado com meu dinheiro. Não usava droga, não trazia amigo, era um garoto educado. Todo mundo conhecia ele assim.”

Samuel continuou conversando sobre o assunto com o filho, que eventualmente admitiu estar envolvido com o grupo criminoso.

“Eu perguntei: ‘Alguém te chamou ou foi de livre e espontânea vontade?'”.

Michel, segundo o pai, ouvia em silêncio, respondia pouco, mas defendia que era sua vontade estar ali.

“Ele falava: “Pai, fica tranquilo, pai. Eu ainda vou dar orgulho para o senhor.”

“E eu dizia: ‘Mas não é esse o orgulho que eu quero, tu entendeu? Por esse caminho que você está, você não vai trazer orgulho. Ele não tinha problema com crime, assalto, nada. Mas ele estava ali dentro, fazendo aquela função pra alcançar coisas maiores. Os amigos que conversavam com ele diziam que ele era ‘muito doido’. Ele não precisava ser chamado — ele se apresentava.”

Samuel diz não saber qual função o filho cumpria dentro do grupo criminoso.

“Eu vi na internet que a função dos garotos novos é carregar marmita, fazer entregas nos pontos… Eu creio que meu filho não conseguia segurar ou usar um fuzil. Eles só tiravam foto – alguém botava na mão dele, mas ele não tinha essa habilidade, entende? Mas não sei, né? Hoje é difícil afirmar isso pra você. Mas ele tinha várias fotos, várias. E com isso eu fiquei assustado.”

Foto mais recente de Michel, vestindo agasalho preto e com cabelos tingidos de loiro, compartilhada pelo pai, Samuel

Arquivo pessoal

Foto mais recente de Michel, compartilhada pelo pai, Samuel

Dor de pai

Samuel diz que desde que descobriu que o filho fazia parte do Comando Vermelho, já não conseguia mais dormir ou trabalhar no mesmo ritmo que antes, e que vinha tentando trazer pessoas experientes para conversar e tentar convencer o filho a ficar longe do crime.

“Eu ainda estava filtrando, planejando, de que jeito eu ia segurar ele, como ia convencê-lo… Eu estava trabalhando na mente dele, trazendo ele pra mim, fazendo o máximo, como um pai que ama o seu filho, pra ele sair dessa situação.”

“Mas quando eu pensava que ele estava em casa, ele estava na rua. Quando eu pensava que eu tinha convencido ele, com tudo que eu ofereci — do meu máximo… Eu trabalhava só pra ele. Eu fazia tudo o que ele precisava, tudo o que ele pedia, eu estava ali pronto pra servir. Só que a mente dele já estava… É muito difícil. Acabou.”

A rotina de Samuel, ajudante de serviços gerais, também tornava impossível manter vigilância constante. “Na escola, ele entrava, tirava uma foto e saía. Sempre fazia isso. Quando a mãe ia pra um lado, a namorada pro outro, ele aproveitava. Não tinha como ficar 24 horas tomando conta, porque eu trabalho fora, de segunda a sexta. Estava no batente, tentando fazer as coisas pra ele…”

“Eu não podia, nesse momento, como as pessoas queriam, como imaginavam, colocar o meu filho como vítima — mesmo ele tendo catorze anos. Porque a vida é feita de escolha. É difícil.”

Ele diz que tentou compreender o que levou Michel a se afastar da família e da escola. “A forma que ele escolheu, abandonando os estudos, foi chocante pra mim. Posso até te mostrar os atestados médicos… comecei a faltar ao trabalho, a ficar doente, tentando entender. Juro que busquei ajuda, mas não conseguia compreender a proporção da mente dele.”

Samuel acredita que o filho foi perdendo o medo da violência que o cercava. “Um menino de catorze anos, vendo colegas morrerem… Ele comentava: ‘Fulano morreu’, mas sem sentir. Eles ficam frios. Não tinha mais o sentimento que nós temos. Viu tanta morte que aquilo virou rotina.”

“Eu estou à base do remédio. No mesmo lugar, na mesma casa. A cama dele está ali, a roupinha dele dobradinha. E eu vejo ele me pedindo as coisas… Ontem mesmo eu fiz dois copos de suco. Eu fui lá e comprei biscoitinho dele. E aí me toquei: ‘Meu Deus, ele não está aqui’.”

Ele lembra com carinho a rotina do filho. “O Michel levantava de manhã, em casa, lavava louça, limpava o banheiro… E dizia: ‘Pai, deixa que eu faço o arroz para não incomodar minha tia’. Essa era a criança que eu tinha, amável. Mas se iludiu para estar sentado em uma moto. Não viu perigo.”

A cultura da ‘ostentação’

O pai acredita que as redes sociais, funcionando como uma vitrine de uma vida luxuosa — e sobretudo, fácil — foram o que atraiu Michel e continuam a seduzir outros meninos como ele.

“É isso que atrai esses jovens. A rede social mostra vários garotos que você vê que às vezes até vão presos e continuam com fama. Ela influencia muito a mente deles, porque o olhar deles… o que acontece na vida dessas pessoas parece do dia para a noite.”

“Essa ostentação que existe nas comunidades — o que é mostrado na televisão e nas redes sociais — faz com que eles achem que tudo vem com facilidade. Eles pensam que vão chegar ali e terão esse poder. Meu filho queria ‘subir no conceito’, entendeu? Ele tinha essa mentalidade. Ele só falava sobre pessoas no poder.”

Samuel diz que tentava explicar que as coisas são conquistadas com etapas, com estudo e trabalho.

“Eu não consigo entender o pensamento dele, um garoto de 14 anos, o que levou ele a estar nesse momento de guerra. Eu disse: “O problema, filho, é uma moto? Eu vou te dar uma moto. Quando chegar a idade maior, a gente vai conquistando tudo’.”

“Eu estava preparando um quarto só pra ele — armário de madeira, cama, tudo pronto. Ia terminar agora em novembro, com o décimo terceiro. Eu falava: “O que tu ganha com isso, se não tem necessidade? Está tudo aqui.”

Samuel e Michel em foto antiga

Arquivo pessoal

Samuel e Michel em foto antiga

Michel de mochila no portão e a última ligação

“Na semana passada, ele estava em casa quarta, quinta, sexta. No sábado, fui na rua comprar biscoito e bolo pra ele. Quando voltei, me disseram: ‘Passei na casa do fulano, e o Michel estava no portão com uma mochila nas costas’.”

Samuel voltou e deu falta das roupas e perfume do filho.

“Ele só me ligou no domingo à tarde. Disse: ‘Vou falar contigo quando estiver fora, todo dia, pra dar bom dia. Eu não sabia o que fazer, jamais imaginava essa situação.”

Na terça-feira, antes de sair para trabalhar, Samuel ligou a televisão e ficou sabendo sobre a operação.

“Eu sabia que ele estava lá. Liguei para ele às oito e meia. ‘Meu filho, como é que você está?’ Ele respondeu que estava bem e que quarta-feira estaria em casa. Mas foi muito rápido e desligou. Não me atendeu mais.”

Na quarta-feira, depois de ver a fotografia e reconhecer Michel, Samuel disse que não quis ir até a Penha, onde moradores recuperaram corpos e deixaram-os enfileirados na rua, porque sentia que ele e a mãe de Michel não estavam preparados para cena.

Preferiram ir diretamente ao IML (Instituto Médico Legal) para fazer o reconhecimento. Quando conseguiram a liberação do corpo, Samuel diz que optou por um enterro rápido.

“Perder um filho assim… não é uma forma natural. Morte natural, a gente chora, sofre, mas aceita. Agora, chegar lá e ver meu filho com um furo na cabeça… gente, quem pode imaginar isso? Ter que reconhecer o corpo do próprio filho assim?”

Samuel Peçanha em foto tirada na quinta-feira (30/10), enquanto procurava informações sobre o filho, Michel Mendes Peçanha, no Instituto Médico Legal durante o reconhecimento dos corpos dos mortos na Operação Contenção

Fernando Frazão/Agência Brasil

Samuel Peçanha em foto tirada na quinta-feira (30/10), enquanto procurava informações sobre o filho, Michel, no Instituto Médico Legal durante o reconhecimento dos corpos dos mortos na Operação Contenção

‘Não quero críticas ao Estado nem ao tráfico’

“Eu não quero crítica sobre o estado nem com o tráfico. Minha preocupação é com aquelas pessoas que perderam. Aquelas pessoas que precisam de uma palavra de conforto. A minha preocupação é o conselho ao qual foi dado para os jovens para que eles repensem a vida deles. Porque o que aconteceu já passou.”

Ele deixa uma mensagem pensando nas famílias. “O filho é uma herança que precisa ser tratada. Pais têm que ter intimidade com os filhos, olhar o comportamento deles. Quando meu filho chegou, busquei toda a informação porque percebi que não era o que me disseram. Não era questão de querer ficar na rua, a situação era maior.”

“Eu aconselho os jovens: vão para o colégio, estudem, se preparem para alcançar sonhos. Tudo que é conquistado com esforço dá liberdade. O melhor amigo e companheiro de um jovem, nos momentos difíceis, são os pais. Nos momentos de necessidade, quem se esforça são mãe e pai. Para chegar e te abençoar é teu pai e tua mãe.”

“O amor do pai e de uma mãe é insubstituível. O conselho deles é paternal. Qual mãe quer perder um filho?”


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