O uso por integrantes do Comando Vermelho (CV) de drones armados para atacar as forças de segurança durante a Operação Contenção no Rio de Janeiro na terça-feira (28/10) indica um ponto de inflexão no tipo de confronto urbano travado entre o Estado e o crime organizado, aponta o ex-policial e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Roberto Uchôa.
“O que aconteceu ontem no Brasil deixou evidente que o campo de batalha mudou, agora vai se disputar o céu”, afirma Uchôa, que também é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Segundo o especialista, o Estado não tem mais a supremacia do espaço aéreo urbano como no passado, com organizações criminosas com amplo acesso a drones e ao conhecimento técnico necessário para transformá-los em armas.
Ainda de acordo com Uchôa, os traficantes estão próximos de dominar a tecnologia dos drones de primeira pessoa (First Person View – FPV), que permite ataques mais precisos e mortíferos.
“Já trabalhei na Polícia Civil e na Polícia Federal, mas não queria estar na rua nesse momento”, diz o pesquisador. “Tenho preocupações sérias com essa nova realidade.”
“Esses equipamentos são fabricados majoritariamente na China e vendidos livremente. É muito fácil comprar ou importar. Mesmo que se tente restringir, há manuais online para fabricá-los com impressoras 3D”, afirma.
Imagens divulgadas pela Polícia Civil mostram os veículos aéreos não tripulados sobrevoando os policiais e lançando granadas durante a ação nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio.
A operação, que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, deixou mais de 121 pessoas mortas, incluindo 4 policiais, e 113 presos, segundo os números oficiais das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro. A ação da terça-feira foi a operação policial mais letal já registrada no país.
Movimentos de direitos humanos classificam a operação como chacina e questionam sua eficácia como política de segurança.
O grande número de vítimas também foi criticado pelo Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que se disse “horrorizado” com a operação nas favelas.
“É assim que a polícia do Rio de Janeiro é recebida por criminosos: com bombas lançadas por drones”, declarou Cláudio Castro. Não há informações sobre feridos após os lançamentos.
De ferramenta de espionagem a arma letal
O uso de drones pelo CV já era monitorado pela polícia. Há registros de traficantes da organização criminosa usando o equipamento para monitorar e planejar um ataque à milícia do Jardim Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em julho.
Antes disso, as autoridades já haviam identificado a utilização de drone para lançar uma granada por integrantes do Terceiro Comando Puro (TCP), organização rival do CV, na comunidade da Congonha, em Turiaçu (RJ).
Mas segundo Uchôa, essa foi a primeira vez que drones armados foram usados para atacar as forças de segurança. O pesquisador relaciona o ato com uma rápida e perigosa curva de aprendizado sobre técnicas de conflito.
O processo começou há anos, mas atingiu um novo patamar com o uso de explosivos e passou por três grandes fases de evolução: primeiro, os drones eram usados para transporte de drogas ou objetos em presídios, ou através de fronteiras.
Depois, para monitoramento de rivais e forças policiais; e agora, chegam à fase em que se tornam armas capazes de lançar granadas e bombas.
A inspiração, explica o pesquisador, vem diretamente da guerra na Ucrânia.
“Os ucranianos precisaram criar drones baratos e em larga escala para enfrentar o poder militar russo”, afirma. “Mas hoje a tecnologia não demora mais para passar de um país a outro. Todo o conhecimento está disponível online.”
E o Brasil não é o único país da América Latina onde os equipamentos estão sendo aproveitados pelo crime. No México, cartéis como o Jalisco Nueva Generación (CJNG) e o de Sinaloa, escalaram rapidamente seu uso.
O CJNG tornou-se pioneiro ao armar drones com explosivo plástico C4 e estilhaços improvisados para atacar rivais, chegando a institucionalizar essa capacidade com a criação de uma unidade especializada, os “Operadores Droneros”.
Uchôa ressalta, porém, que o uso de drones na Ucrânia já entrou em uma quarta e nova fase com o uso de drones “suicidas”, de primeira pessoa guiados por óculos especiais.
E, segundo ele, essa tecnologia deve chegar às organizações criminosas no Brasil em um futuro próximo.
“Esses drones são guiados diretamente até o alvo e explodem no impacto. O medo é que passem a ser usados para derrubar helicópteros ou atacar bases policiais”, alerta.
Ele afirma que o avanço é preocupante porque rompe a superioridade aérea que o Estado mantinha.
“Antes, o domínio era dos helicópteros da polícia. Agora, as facções entenderam que também podem usar o espaço aéreo como campo de ataque”, diz.
Combate difícil e riscos
Segundo Uchôa, as forças de segurança ainda não têm respostas eficazes para lidar com esse tipo de ameaça. Existem tecnologias que interferem no sinal ou tomam o controle dos drones, mas todas apresentam riscos.
“Se você derruba um drone carregado com granada, ele pode cair sobre uma casa e matar uma família. É muito diferente de um campo de guerra, que você pode derrubar e não se preocupar com o efeito colateral.”
Além disso, diz, já existem tecnologias que utilizam fibra ótica para barrar tentativas de interferência nos drones.
O ex-policial defende que o Estado deve investir mais em inteligência e investigação, e não apenas em confronto direto.
“Não adianta esperar a hora do confronto. É preciso monitorar o mercado, identificar se há pessoas comprando em grande escala”, propõe.
Ciclo de violência
Uchôa vê ainda nas operações policiais de grande escala um retrato de um ciclo que se repete há décadas: confrontos que produzem dezenas de mortos, mas não alteram a estrutura do crime.
“É o mesmo filme de 30 anos atrás, só que em uma escala maior”, critica, afirmando que sempre que é necessário repetir uma operação como essa, é emitido um sinal de que a estratégia não está funcionando.
Para ele, o verdadeiro motor do crime organizado continua sendo o armamento pesado e o controle de territórios, que permite às facções dominar serviços e até influenciar eleições locais.
“O problema central do Brasil é a proliferação de armas de fogo. São elas que garantem o poder do crime e o terror nas comunidades”, diz.

