Mais de 40 anos após o desaparecimento forçado de dezenas de crianças do município mineiro de Santos Dumont, o Estado brasileiro dá um passo no reconhecimento de uma das maiores violações de direitos humanos da história recente do país. Um acordo firmado entre a União, o governo de Minas Gerais e familiares das vítimas garantirá o pagamento de indenizações a parte das famílias afetadas pelo esquema de adoções internacionais irregulares que, entre 1985 e 1987, arrancou mais de 170 crianças de seus lares sob o aval de autoridades públicas, advogados e religiosas. A medida representa um marco de reparação moral e financeira após décadas de luta por justiça.
O pacto, resultado de meses de negociações conduzidas pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais (AGE-MG), encerra uma ação civil que tramitava desde 2017 no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6). A demanda foi proposta por três mães e dois irmãos de sete crianças enviadas ao exterior sem autorização das famílias, em um processo que, segundo os autos, contou com a participação direta do então juiz de Direito Dirceu Silva Pinto, já falecido, servidores do Judiciário e comissários de menores. O tribunal reconheceu a responsabilidade dos entes federativos, apontando falhas graves na atuação institucional e negligência na fiscalização das adoções.
Ao julgar o caso, o TRF6 afastou a tese de prescrição e destacou o contexto de extrema vulnerabilidade social das famílias atingidas. O acórdão ressaltou que o episódio ocorreu em meio à transição da ditadura militar para a democracia, período marcado pelo medo, repressão e descrédito nas instituições. Segundo os desembargadores, a combinação de pobreza, desinformação e abuso de autoridade criou o cenário perfeito para a atuação de uma rede que mascarava adoções ilegais como atos de caridade. O tribunal concluiu que Minas Gerais teve responsabilidade direta, por meio da conduta de seus agentes, enquanto a União foi responsabilizada por omissão, ao permitir a saída das crianças do país sem controle adequado.
O acordo estabelece que o Estado de Minas Gerais responderá por 80% dos valores devidos, cabendo à União arcar com os 20% restantes. As indenizações variam conforme o número de filhos levados e o grau de dano comprovado. Maria Ricardina de Souza, mãe de uma das crianças desaparecidas, receberá R$ 409 mil, enquanto seus filhos Maria Concebida Marques e Sebastião de Souza Marques terão direito a R$ 122 mil cada. Outras mães, como Heloisa Aparecida da Silva e Isaura Cândida Sobrinho, ambas com três filhos retirados à força, serão contempladas com valores superiores a R$ 410 mil. O total das reparações ultrapassa a marca de R$ 1,4 milhão.
Para a advogada da União Daniela Mendonça de Melo, coordenadora regional de Negociação da Procuradoria-Regional da União da 6ª Região (PRU6), o acordo representa “um avanço civilizatório e uma resposta do Estado à dor dessas mulheres”. Segundo ela, o consenso foi alcançado após quase seis meses de tratativas e reflete o compromisso do poder público com a pacificação social e a responsabilização histórica. “Essas famílias esperaram décadas por um reconhecimento que, embora tardio, simboliza justiça e humanidade”, afirmou.
Após a homologação judicial, os pagamentos colocarão fim definitivo à disputa, impedindo novas ações ou recursos sobre o tema. Ainda que nenhuma compensação financeira seja capaz de reparar integralmente o trauma, o desfecho encerra um ciclo de abandono institucional e devolve às vítimas o direito à memória e à dignidade. Para as famílias de Santos Dumont, o acordo não apaga o passado, mas reafirma que a verdade, ainda que demore, pode triunfar sobre o silêncio e o esquecimento.
* Estagiária sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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