O processo sobre a atuação de uma suposta máfia de transplantes de órgãos que atuaria em Poços de Caldas (MG) está marcado pelo sumiço de uma prova documental que poderia inocentar três médicos condenados pelo assassinato do menino Paulo Veronesi Pavesi, vítima de um acidente no ano 2000.
No quarto episódio de “Caso Zero”, podcast do GLOBO que investiga os desdobramentos de uma das histórias mais controversas sobre transplantes no país, a colunista Bela Megale e o jornalista André Borges detalham o desaparecimento da segunda arteriografia realizada na vítima.
O exame, feito para verificar se ainda há circulação sanguínea no cérebro antes da retirada dos órgãos, foi realizado na Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas, atestando a sua morte cerebral. A realização do exame foi confirmada não apenas pelos médicos do hospital, como também pelo procurador do Ministério Público Federal, Adailton Ramos do Nascimento.
Em entrevista ao podcast, o procurador diz que viu o documento, chegou a ter as chapas em suas mãos e a levá-las para um médico de Belo Horizonte para analisar o material. Durante as investigações, o exame foi apreendido pela Polícia Federal. Após isso, porém, o documento desapareceu.
O podcast relata que o juiz Narciso Alvarenga, que atuava na Vara Criminal de Poços de Caldas e esteve à frente do caso de Paulinho Pavesi, desconsiderou o desaparecimento dessa arteriografia. Para o juiz, todos as pessoas que disseram ter visto o exame mentiram ou, na melhor das hipóteses, se enganaram, como diz a sentença assinada por ele. Esse fato chegou a ser questionado pelos médicos, que contrataram Miguel Reale Júnior, um dos juristas mais renomados do Brasil, para ingressar com uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para declarar o juiz Narciso suspeito e, assim, impedi-lo de atuar no processo.
Em entrevista ao podcast, Reale conta ter questionado o fato de o magistrado ter concluído que a arteriografia não existiu sem ter aberto uma investigação para apurar a suspeita. A partir daí, os médicos da Santa Casa foram condenados de matar o menino, ao retirar seus órgãos.
O episódio 4 traz entrevistas inéditas concedidas pelos três médicos da Santa Casa, que nunca tinham falado sobre o assunto até hoje. A ex-coordenadora do sistema nacional de transplantes do Ministério da Saúde Rosana Nothen também relata o que concluiu sobre a existência da suposta máfia acusada de matar pessoas para vender seus órgãos.
Os quatro primeiros episódios já estão disponíveis e podem ser ouvidos abaixo. O último episódio será lançado nas próxima segunda-feira, 3 de novembro. “Caso zero” também pode ser acompanhado nas principais plataformas de áudio, como Apple e Spotify.
Em 19 de abril de 2000, o menino Paulo Veronesi Pavesi escorregou do parapeito do playground do prédio onde vivia com a família e caiu de uma altura de cerca de 10 metros. Paulinho, como era chamado, foi socorrido no hospital particular Pedro Sanches, onde passou por uma cirurgia no crânio. Apesar das tentativas para salvá-lo, o menino não resistiu e teve morte cerebral, sendo mantido por aparelhos.
Dois dias depois, ele foi encaminhado para a Santa Casa de Poços de Caldas, e os pais autorizaram a doação de seus órgãos. Passados alguns meses, o pai da criança, Paulo Airton Pavesi, recebeu uma cobrança de mais de R$ 11 mil, hoje equivalente a mais de R$ 50 mil, do Pedro Sanches. O hospital se negou a rever o valor e, sem obter o pagamento, pediu a falência da empresa de Pavesi. Ele foi até a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos para reclamar da situação, que ganhou o noticiário nacional.
O Ministério Público Federal de Minas passou a investigar e apontou, além da cobrança irregular, a atuação de uma suposta organização criminosa em Poços de Caldas, que lucraria com o transplante ilegal de órgãos, burlando a lista oficial do SUS.
Foram encontradas falhas nos procedimentos de registros de morte e de transplante de órgãos de Paulinho, e os médicos foram acusados de forjar laudos sobre a morte cerebral do menino para retirar seus órgãos. O hospital Pedro Sanches acabou excluído do SUS, e o serviço de transplante, feito pela Santa Casa, foi paralisado e nunca mais retornou à cidade. Na época, o então ministro da Saúde, José Serra, que era pré-candidato a presidente, determinou uma auditoria nos hospitais, e uma CPI foi instaurada no Congresso.
Ao se debruçarem por mais de dois anos sobre milhares de páginas de documentos, Bela e Borges descobriram lacunas e situações polêmicas no caso, como o desaparecimento de provas que poderiam inocentar médicos. Os jornalistas entrevistaram mais de 30 pessoas, incluindo cinco dos seis médicos acusados, que falaram pela primeira vez.
Reportagem, pesquisa e narração de “Caso Zero” são de Bela Megale e André Borges, que também colaboraram com o roteiro de Ives Rosenfeld. A edição e sonorização é de João Guilherme Lacerda, com trilha original de Gabriel Falcão e mixagem de Vinicius Lis. Alexandre Maron, da Ampère Media, é responsável pelo desenvolvimento e coordenação de produção. A produção executiva é de Alan Gripp e André Miranda. E a pesquisa adicional foi feita por Elisa Soupin, com materiais da TV Record, TV Globo, EPTV, g1, TV Câmara e nos jornais Estado de Minas e O Tempo.

