Placas de “vende-se” e “aluga-se”, na Rua Manoel Vitorino, em Piedade, ainda se espalham ao longo da via. Presentes na fachada de 15 imóveis e pontos comerciais, são marcas visíveis deixadas pelo fechamento, em 2014, da Universidade Gama Filho (UGF), instituição em torno da qual o bairro cresceu por décadas. Entre moradores e trabalhadores locais, a expectativa é que a situação comece a mudar a partir de amanhã, com a inauguração do Parque Piedade Arlindo Cruz, construído pela prefeitura em parte do terreno onde existiu a UGF.
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No auge, nos anos 1980, a Gama Filho chegou a ter 30 mil alunos, que, além de frequentar o campus, movimentavam o comércio no entorno. Pelo menos 33 lojas e três estacionamentos vizinhos fecharam logo depois da universidade . O vazio deixado foi ocupado por moradores de rua, dependentes químicos, e muita gente decidiu se mudar, preocupada com a violência.
—Tive que gradear os fundos da minha casa para não correr o risco de ser invadida à noite. Muita gente se mudou por causa de assaltos. Fiquei porque a casa é própria — conta a aposentada Maria da Luz, de 78 anos, que mora há 52 anos na Rua Matriz Cintra, ao lado de um acesso do novo parque.
Maria da Luz foi aluna e funcionária da UGF, onde conheceu o marido, já falecido. Seus três filhos também estudaram lá — dois fizeram o curso superior e todos frequentaram o Colégio Piedade, que deu origem à universidade.
A aposentada ganhou uma vizinha antes mesmo do parque abrir. Há um ano, atraída pelo baixo custo dos aluguéis, a comerciante Rosângela Menezes da Costa abriu um bazar onde vende de doces a carregadores de celular, em boa parte para operários que trabalham no lugar:
—Vou fazer reformas e aumentar a oferta de mercadoria. O parque será um sucesso— acredita ela.
Em frente à entrada do parque, que ganhou calçadas largas e iluminação de LED, um ponto passa por reformas para alojar uma padaria.
Em um esforço para reforçar a sensação de segurança, o parque será a sede, na Zona Norte, da nova Força Municipal, que começa a trabalhar armada nas ruas do Rio a partir de janeiro. A obra termina em dezembro.
Antes de o parque abrir, o bairro começou a ensaiar alguma reação há cerca de três anos, com a inauguração de novos condomínios populares no entorno. Um deles fica na Rua Assis Carneiro, onde por décadas funcionou uma fábrica de açúcar. Essa ocupação incentivou Verônica Rocha a investir em uma loja de rações na esquina das ruas Manoel Vitorino e Assis Carneiro:
— Há três anos já se falava na construção do parque. Contei com isso ao investir e agora, claro, espero que as vendas aumentem —diz.
A loja de rações é vizinha de uma academia de crossfit.
— Viemos para cá porque o aluguel era barato. Com a abertura do parque, a intenção é ampliar. Vamos comprar aparelhos de ginástica e musculação, pois a demanda deve crescer com mais gente frequentando essa parte do bairro — aposta Gustavo Martins, um dos donos da Box Cross Atlas.
O projeto prometido para a área ainda não está completo. Para o fim de 2026, está prevista a inauguração de uma unidade do Sesc, subdividida em oito áreas. Em 17 mil metros quadrados, haverá escolas de ensino infantil, fundamental e médio, além de um centro esportivo que deverá receber partidas de vôlei do Flamengo, patrocinado pelo Sesc. O local foi planejado para receber até 1,5 mil alunos em práticas esportivas e 500 atletas.
— A gente vai reformar e manter a piscina olímpica que era da UGF. Pretendemos ainda abrir um teatro para 200 espectadores. Entre as modalidades esportivas teremos judô, em convênio com o Instituto Reação, de Flávio Canto— explica o presidente do Sesc e da Fecomércio, Antonio Florencio de Queiroz Júnior.
Em frente à futura entrada do Sesc há uma revenda de galões de água mineral. Nos áureos tempos, esse era o endereço de uma livraria que funcionou por 45 anos — até fechar junto com a UGF.
— No nosso caso, a gente acredita que o movimento vai aumentar quando o Sesc abrir— diz o proprietário Robson Luiz de Freitas.
Quando alugou o espaço, há três anos, Robson pagava R$ 800 por mês. Com a recuperação do entorno, o contrato foi renegociado: passou para R$ 1 mil.
O parque custou à prefeitura R$ 72,4 milhões, incluindo as despesas para implodir dois prédios e demolir um terceiro. O espaço, que ocupa 23 mil metros quadrados, terá duas piscinas, campos de futebol com grama sintética e de areia, palco para shows e academia. Uma passarela de pedestres foi construída para permitir o acesso de moradores que vivem do outro lado da via férrea. A expectativa é que de 15 a 20 mil pessoas frequentem o espaço por mês. A prefeitura criou até uma linha extra de ônibus, ligando o Parque Piedade ao Méier, que só vai operar nos fins de semana.
—A gente replicou aqui um modelo desenvolvido a partir da inauguração do Parque Madureira (em 2012). Além de oferecer lazer, áreas abertas como essa influenciam no microclima das regiões, ao reduzir as ilhas de calor dos bairros — explica o secretário de Infraestrutura, Wanderson Santos.
A manutenção do espaço caberá à secretaria de Conservação. Diego Vaz, à frente da pasta, avisa que o parque vai abrir ao público de terça a domingo, das 6h às 22h — e a área aquática funcionará das 9h às 17h. Na inauguração, vai ter show com Arlindinho, filho do grande sambista que batiza o parque, morto em agosto desse ano.
A viúva Babi Cruz explicou que apesar de Arlindo Cruz ser conhecido pela ligação com Madureira e a escola de samba Império Serrano, a história do marido se confunde com a de Piedade.
— Conheci Arlindo e trocamos o primeiro beijo no clube Oposição, que ficava próximo à Suburbana. Arlindo morou no Morro do 18. E, ao casarmos, fomos morar em uma casa vizinha ao parque. Arlindinho estudou na UGF — contou Babi.
A prefeitura também construiu o prédio onde funcionará uma espécie de memorial da Gama Filho, a ser administrado por ex-alunos, com acervo de 2 mil objetos . O espaço relembrará momentos como exibições do coral Gama Filho com a OSB, performances de atletas formados ali que disputaram as Olimpíadas, e fará referência a ex-estudantes como Xuxa e Sandra de Sá.
Antes da UGF, aberta em 1940, o bairro ficou mais conhecido pela crônica policial: em 1909, o jornalista Euclides da Cunha, autor do clássico “Os sertões”, morreu ao trocar tiros com Dilermando de Assis, amante de sua esposa.
Vizinhos que vieram de longe
Vizinhos do novo parque, dois prédios da antiga Universidade Gama Filho continuam sem destino. Os imóveis, administrados pela massa falida do Grupo Galileo — último dono da instituição — foram invadidos.
Os gestores do fundo, que tem R$ 2 bilhões em dívidas a pagar, tentam a reintegração de posse na Justiça. Entre os ocupantes do prédio, onde funcionava a Faculdade de Odontologia, estão 38 famílias de venezuelanos, que somam 190 pessoas.
Há casais com até seis filhos, na maioria desempregados.
— Nós morávamos no Morro do Banco (Itanhangá). Mas, além dos tiroteios constantes, os aluguéis eram muito caros — contou Juan Ravago de 35 anos, um dos moradores do prédio.
Ex-garimpeiro, que trabalhava em minas na Venezuela, Juan virou barbeiro no Rio de Janeiro. O salão improvisado fica em uma das entradas do prédio. O corte custa R$ 20.
Eduardo Hernandez, também venezuelano, diz que o grupo teme ser despejado e planeja se inscrever em programas sociais.
A prefeitura estudou a desapropriação total da UGF, mas desistiu. O administrador judicial Frederico Costa Ribeiro disse que a Justiça negou a reintegração de posse. Ele recorreu.

