Com o corpo ainda quente e a poeira mal baixada, o legado de Bolsonaro — ao que tudo indica, fora de circulação por um bom período — já é motivo de briga. As pesquisas apontam ser algo em torno de 16% do eleitorado, e se anuncia uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro. Assiste-se, então, por meio de posts e vídeos, ao que facilmente seria classificado como fim de feira. A “xepa” é disputada por familiares, agregados, “chegados” e amigos da onça. Não se trata de espetáculo bonito ou respeitoso. É a disputa pela herança diante de corpo presente.
O próprio Bolsonaro não engrandece o enredo, quando chora em público e lamenta seu destino. Um ator à busca de um dublê ou alguém que prefere a fuga diante da crise. Para quem se vendeu como atleta e entusiasta da tortura, a fragilidade encenada sugere script na boca de canastrão. São lamúrias sem lágrimas ou rosto compungido. O capitão desmerece o ensinamento segundo o qual bom general não morre na véspera.
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Comparada aos petistas da Lava-Jato, a novela de Bolsonaro deixa de ser tragédia para assemelhar-se a pastelão circense. O ex-ministro José Dirceu, condenado, passou bom tempo preso, e os correligionários Delúbio Soares e João Vaccari Neto também amargaram seus anos de cadeia. Ao contrário de Mauro Cid, nenhum dos três abriu o bico em troca de redução nas penas. Tampouco choraram em público seguidamente ou baixaram no hospital. Como se diz, são modelados em outro material. Talvez você não seja simpático aos petistas, mas nem por isso lhes negará uma honradez em combate desconhecida até agora por Bolsonaro.
Cada qual tem sua coragem, e o capitão — em outra imagem de luta — é conhecido por abandonar os amigos no campo de batalha. Sugere ser mais um arruaceiro de churrasco que um herói de romance. Agora mesmo solta a mão do filho Eduardo ao perceber que daquele mato não sairá cachorro. Pior: pelo andar da carruagem, terá de sustentá-lo em temporada indefinida no autoexílio. Mesmo angariando Pix adoidadamente, não parece ser, para o pai, uma boa notícia.
O desfile de visitas diárias permitidas a Bolsonaro, em sua prisão domiciliar, deve por certo causar-lhe compreensível indigestão. Soa antes uma despedida, não um abraço solidário, com os cupinchas em busca de bênção e olhos no testamento. À vista de todos, já se come um prato frio do bolsonarismo sem Bolsonaro — basta destacar o assanhamento de Ciro Nogueira ao se oferecer como vice de Tarcísio. Ou Valdemar Costa Neto estapeando em briga pública o filho encrenqueiro.
Bolsonaro sabe que não nasceu para Lula ou Getúlio Vargas e luta para não ser apenas uma foto na parede. Ou só mais um preso ocioso na cadeia. Lula deu a Fernando Haddad mais de 40 milhões de votos, mesmo guardado atrás das grades. Solto, ganhou nova eleição contra um candidato que usou pesadamente a máquina. Getúlio, derrubado do poder, voltou ao cargo quatro anos depois e, após o suicídio, seu legado foi transformado em tradição política. O bolsonarismo, ao contrário do lulismo e do getulismo, não tem plataforma ou essência. É apenas um populismo forrado de preconceitos e insultos.
Ao redor de Bolsonaro, já se verifica um racha de interpretação entre seus seguidores fiéis e os cínicos do Centrão. Em oposição ao bolsonarismo raiz, floresce um tal bolsonarismo light. O eleitor radical me desculpe, mas é coisa difícil de engolir. Na primeira opção, Sóstenes Cavalcante? Na segunda, Tarcísio de Freitas? A diferença ali é só o corte de cabelo. Chega a ser grotesca a tentativa, sem a sofisticação de um médico e um monstro. A bipolaridade, se existir, é ilusória. Afinal, Bolsonaro sempre se mostrou um político unidimensional e, portanto, as gradações seriam somente um jogo de palavras para ludibriar o eleitorado.
A operação de lipoaspiração para a unção do sucessor divide a própria família e torna o enredo ainda mais curioso. Aos olhos do público ocorre uma briga pela maior parte no butim. Não é porque todos têm o hábito de comprar em dinheiro vivo que funciona a ordem-unida do “marcha, soldado”. Eduardo se esgoela, enquanto Flávio joga parado, e Carluxo fica em Floripa. Pelos sinais emitidos, o testamento quer privilegiar um dos zeros. A Michelle está reservado um cargo menor, como senadora e cuidadora. Mesmo de corpo presente, em prisão domiciliar ou na Papuda, Bolsonaro assombrará a direita no papel de alma penada.