Após um ano no comando da Polícia Civil, o delegado Felipe Lobato Curi afirma que o maior desafio da corporação continua sendo melhorar a sensação de segurança da população. Segundo ele, mesmo quando há redução dos índices de criminalidade, o clima de insegurança persiste em razão das guerras territoriais travadas por organizações criminosas que atuam no estado. Ao analisar o cenário atual do Rio, Curi avalia que os problemas da segurança pública têm raízes profundas, que demandam mudanças na legislação. Para ele, nenhuma polícia do mundo consegue resolver o problema sem a ajuda de outros ‘atores’. Em entrevista ao GLOBO, ele fez um balanço do primeiro ano de gestão, apontou as dificuldades para prender lideranças do tráfico, como Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão (TCP), e Edgar Alves Andrade, o Doca (CV), comentou a situação do crime organizado e antecipou os próximos projetos da instituição.
O que você apontaria hoje como o maior desafio da Polícia Civil?
O maior desafio é melhorar a sensação de segurança. Hoje temos índices melhores do que vários estados, mas a sensação de segurança ainda não é boa porque vivemos com a questão da disputa territorial e das guerras de facções. O outro desafio é desmistificar as falsas narrativas em que muita gente coloca na conta da polícia todos os problemas da segurança pública. Obviamente temos a nossa parcela de responsabilidade, porém muita coisa que acontece no Estado do Rio não é problema de polícia. Não fomos nós que demos causa, só atuamos na consequência. Vários outros atores deram causa a esse estado de coisas que a gente está vivendo. Por exemplo, por que um adolescente entra para a boca de fumo, pega um fuzil e vai trabalhar para o tráfico? Isso é problema da polícia? Não. Mas a gente é que tem que ir lá resolver o problema.
Qual é a origem do problema que enfrentamos hoje?
O Estado do Rio de Janeiro vem de uma série de decisões equivocadas nos últimos 20 anos, que alteraram absurdamente o cenário da segurança pública no Rio de Janeiro. Antes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), os criminosos se concentravam nos grandes complexos de favela como o Alemão, Penha, Rocinha, Jacarezinho, Mangueira, entre outros. Mas, depois das UPPs, que era um projeto bom, mas perdeu o controle, o crime se espalhou. A realidade que a gente tinha aqui concentrada foi para a Baixada, Região dos Lagos, Costa Verde. Hoje até Cabo Frio e Búzios sofrem com disputa territorial de facção. O que aconteceu foi a metástase do tráfico, e ele se espalhou para o estado inteiro.
Como era encontrar o TH Joias em eventos e vê-lo envolvido em pautas de segurança pública? Chegou a fazer algum alerta sobre ele nos bastidores?
Eu conheci bem a trajetória criminosa do TH Joias, desde 2017, quando conduzi a investigação que resultou na sua prisão. Por isso, vê-lo anos depois em espaços institucionais, tentando se travestir de agente público, sempre me pareceu um enorme contrassenso. Eu nunca tive dúvidas sobre quem ele era de fato: um criminoso ligado a uma das maiores facções do país. E sim, nos bastidores sempre manifestei preocupação com esse tipo de infiltração do crime organizado na política. A operação da semana passada, conduzida de forma integrada pelas polícias Civil e Federal, junto com o Ministério Público, apenas confirmou o que nós já sabíamos: a máscara dele tinha que cair. O Estado do Rio não pode tolerar que criminosos usem mandatos para expandir os interesses de facções. Essa prisão foi mais do que necessária — foi uma resposta ao povo fluminense e uma reafirmação de que a lei está acima de qualquer cargo ou discurso.
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Como está a articulação com os EUA para enquadrar quadrilhas como organizações narco terroristas?
Esse processo está em andamento, e nós auxiliamos a Secretaria de Segurança Pública com um relatório de inteligência bastante robusto. Isso é fundamental porque, a partir desse reconhecimento, temos condições de trocar informações, obter mais recursos, ampliar ações e adequar a legislação. Hoje, quando esses criminosos são presos portando armas de guerra, muitas vezes cumprem apenas um ano de pena. A legislação atual já não é compatível com o cenário que enfrentamos no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. O que vivemos aqui deixou de ser apenas uma questão de segurança pública. Polícia nenhuma do mundo enfrenta o que as forças do Rio combatem. Trata-se de um problema de segurança nacional.
O senhor afirma isso porque o Comando Vermelho já atua de forma organizada em todo o país?
Eles não tinham essa capilaridade. Foram construindo esse intercâmbio criminoso para se expandir. Há pessoas vindo de outros estados para cá e levando conhecimento para lá, e assim o ciclo se repete. O problema é sério, mas muitos não enxergam isso. E só a polícia não vai resolver. Polícia nenhuma do mundo vai resolver. É por isso que digo: pode chamar a Nasa, a Scotland Yard, o FBI, quem for. Não vai resolver, porque estamos diante de um sistema em que a justiça criminal precisa ser revista. Enquanto for vantajoso para o criminoso, ele vai arriscar. O que falta é uma legislação adequada.
Você sempre fala na necessidade de uma mudança na legislação no enfrentamento ao crime. Onde está o problema?
Vamos pegar, por exemplo, o crime de estelionato digital. O criminoso causa um prejuízo de milhões de reais depois de entrar na sua conta. Sabe o que acontece com ele? Praticamente nada, do ponto de vista prático. É considerado um crime sem violência ou grave ameaça. O risco é tão baixo que ele pensa: “Vou dar um golpe aqui e consigo R$ 10 milhões. Pago R$ 500 mil para um advogado. Se tiver de cumprir uma prisãozinha de seis meses, ainda fico com R$ 9 milhões”. Enquanto prevalecer essa sensação de impunidade, o crime vai continuar saindo barato.
No passado, você foi o responsável pela operação que localizou o Ecko. Não gostaria de ter nesse currículo a prisão do Peixão ou do Doca?
Não vou dizer que seria importante, é importante tirar o Peixão, é importante tirar o Doca, mas é importante tirar muitos outros também de circulação. E a gente já prendeu tanta gente da estrutura deles que são até mais importantes. Mexemos com muita gente da estrutura do Comando Vermelho ao longo da gestão e ainda tem trabalhos em andamentos. Mas não prendemos o Peixão alguns meses atrás por um triz. Então por um triz mesmo. Então assim, a hora dele vai chegar.
Qual a maior dificuldade para prender essas lideranças?
No caso da Cidade Alta é a questão de todo o transtorno que causa no entorno. Muitas vezes temos que parar o trânsito, aí a imprensa vem mostra aquela imagem do pessoal no chão do ônibus e isso potencializa um uma sensação de insegurança. Mas não tem jeito, não tem outra forma. Quanto mais inteligência eu tiver numa área dessa conflagrada, mais confronto vou ter. A lógica é inversa do que as pessoas falam. Porque se sei que o Peixão está e um lugar, óbvio que vou ter confronto para chegar lá, porque ele tem uma rede de proteção e contenção muito grande. Seguranças fortemente armadas que fazem com que a gente leve tempo para chegar e ele consiga sair.
Durante a sua gestão, dois MCs foram presos em episódios que tiveram grande repercussão. Como responde às críticas de que há perseguição contra o funk e o rap?
A crítica é normal, faz parte. Agora, o que eles fazem é narco cultura. Já falei bastante sobre isso, mas, no caso do Oruam, ele precisa entender que não pode afrontar, esculachar nem desrespeitar uma autoridade policial. No episódio que ganhou repercussão, os policiais estavam em uma ação legítima do Estado. O Oruam e o grupo dele foram lá, frustraram essa ação legítima e acharam que ficaria por isso mesmo. Ainda xingaram o delegado, falaram um monte de coisas e chegaram a atirar pedras na viatura — se atingisse de fato, poderia ter matado alguém. Então, ele está colhendo o que plantou. É simples assim. Não há perseguição contra ninguém.
É um recado de não ataque a Polícia Civil. Não afronte a Polícia Civil. Porque se você afrontar, terá reação. Pode ser quem for, nem que seja a última coisa que eu faça como secretário. Eu não tô preocupado com cadeira. Sou delegado e estou secretário. Então, eu tenho muito meu pé no chão com relação a isso. Não sou apegado a cadeira e não vou deixar ninguém desrespeitar a minha instituição.
Parece que seu nome já circula em grupos políticos como um possível candidato nas próximas eleições. Já pensou a respeito?
Isso nunca passou pela minha cabeça. Sou até um pouco avesso à política. Com todo respeito aos parlamentares, não é muito a minha praia. Não estou dizendo que nunca vou ser, mas não faz parte dos meus planos atualmente. Gostaria de ficar aqui até o final de 2026, pelo menos, para termos tempo de concluir os projetos. Se pudesse ficar mais, melhor ainda. Mas, ficando até o fim de 2026, acredito que daria tempo de concretizar o que planejamos para a instituição.
Qual é a sua avaliação sobre o primeiro ano na secretaria de Polícia Civil?
Quando assumi o cargo, a convite do governador Cláudio Castro, os índices de roubo de veículos e de cargas estavam elevados. Sugeri a reedição da Operação Torniquete, que já mostrou resultados, e lançamos a Operação Contenção para frear o crime organizado. Também intensificamos as investigações de lavagem de dinheiro e acredito que a Polícia Civil nunca atuou tanto nessa área como agora. Foram diversos bloqueios de bens, incluindo o recorde histórico de R$ 6 bilhões, além de prisões importantes.
Ainda temos um problema enorme com o roubo de celulares. Como resolver?
Durante a minha gestão também lançamos a operação Rastreio com objetivo de combater a rede que envolve o furto e roubo de celulares. Ela é muito importante, mas ainda está em fase de amadurecimento. Diferentemente dos veículos, o celular é muito pulverizado, qualquer pessoa pode fazer. Estamos focados nos receptadores, mas a legislação dificulta, já que esse crime não envolve violência e os presos não permanecem detidos. Vamos adaptando as estratégias. Já há bons resultados, mas ainda falta chegar realmente no azul.
Quais são os próximos passos da instituição?
Neste semestre, vamos inaugurar mais de dez delegacias. Três já foram abertas na Baixada, e outras estão em fase final em Niterói, São Gonçalo e na Região dos Lagos, previstas para outubro. Transformamos a antiga DRCI em Divisão de Repressão a Crimes Cibernéticos, já formalizada. Também abriremos três novas DEAMs: em Campo Grande, na Zona Sul e a DEAM Digital, que permitirá às vítimas de violência doméstica registrar ocorrências e solicitar medidas protetivas totalmente on-line. A ideia é facilitar o acesso.
Os dois projetos sobre a Polícia Civil que tramitam na Alerj receberam, juntos, mais de 500 emendas de deputados. Na sua avaliação, por quais razões essas propostas enfrentam resistência?
É natural que projetos estruturantes como esses, que redesenham a carreira e a organização da Polícia Civil, despertem debates intensos no Parlamento. Estamos falando de propostas históricas, que estavam engavetadas há décadas, e que agora avançam graças à determinação do governador Cláudio Castro. O fato de terem recebido mais de 500 emendas mostra o tamanho do interesse e da responsabilidade da Alerj em aperfeiçoar o texto.
A deputada Marta Rocha (PDT) criticou as propostas e afirmou que os servidores não participaram da elaboração, o que “resultou em um texto muito raso”.
Não é verdade. Falei com todas as categorias. Realizamos diversas reuniões, ouvimos todos, colhemos sugestões e muitas delas foram incorporadas. O que não se pode é criar falsas expectativas com demandas inviáveis ou desconectadas da realidade. O nosso compromisso é com a transparência, com a responsabilidade fiscal e com a valorização da instituição Polícia Civil. Muitas emendas são boas na teoria, mas na prática ferem o regime de recuperação fiscal e algumas são inconstitucionais. Não há recurso para implementa-las. Estão “vendendo ilusão” para os servidores em troca de voto. O texto enviado pelo governador e costurado por nós, não é raso, pelo contrário, é sólido, moderno e representa um marco no fortalecimento da segurança pública do Rio de Janeiro e é o possível a ser feito no momento.