Hermeto Pascoal (que morreu neste sábado, aos 89 anos) e o americano Miles Davis (1926-1991), ícone do jazz, ficaram amigos logo de cara. Assim que se conheceram, nos bastidores de um show do percussionista brasileiro Airto Moreira, em Nova York, no final dos anos 1960, Davis o convidou para a sua casa — onde, na mesma noite, os dois lutaram boxe.
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Da súbita amizade logo nasceu a parceria musical. Em junho de 1970, a dupla entrou em estúdio para gravar três composições de autoria de Hermeto: “Little church”, “Nem um talvez” e “Selim”. O disco com as gravações, intitulado “Live-Evil”, foi lançado em novembro de 1971. O brasileiro, no entanto, ficou de fora dos créditos do trabalho — o que significa que ele também não recebeu os royalties referentes àquelas músicas. Mas, para Hermeto, isso nunca foi um problema.
— Sei que Airto falou com ele do assunto, e depois Herbie Hancock e Wayne Shorter, mas eu não o fiz. Para quê? Miles era uma pessoa elegante, um ricaço, tinha tudo o que queria, então não faria algo assim por dinheiro, muito menos por vaidade, e também não acho que fosse capaz de fazê-lo somente para causar discórdia. Se ele disse que a música era sua, então era sua — disse Hermeto em entrevista ao jornal espanhol El País, em 2018.

Homem dos mil instrumentos, Hermeto Pascoal comemora 80 anos
Atualmente, em reedições de “Live-Evil” e no streaming, o nome de Hermeto já aparece com os devidos créditos.
A música de Hermeto nunca coube — e nem vai caber — em rótulos. Quando completou 80 anos, falou ao GLOBO sobre o título de “música universal”:
— Nunca fiz um grupo de bossa nova ou de forró. Cansei de tocar em festivais de jazz no exterior, mas nunca vou tocar apenas jazz. Vou tocar frevo, baião, música clássica. Então eu chamo isso de música universal. É o único rótulo que eu acho que se pode usar.
Em 2023, Hermeto recebeu, em Nova York, nos Estados Unidos, o título de Doutor Honoris Causa da Juilliard, prestigiosa escola de artes da qual suas músicas fazem parte do currículo. O músico recebeu o mesmíssimo título pelas universidades federais de Paraíba e Alagoas, este último seu estado natal.
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No ano passado, Hermeto lançou seu último disco de inéditas, “Pra você, Ilza”, uma homenagem a Ilza Souza Silva, mãe de seus seis filhos e sua companheira de 1954 a 2000 (ano em que faleceu, vítima de câncer). O trabalho foi eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) um dos melhores álbuns brasileiros de 2024. No mesmo ano, o músico ganhou sua primeira biografia, “Quebra tudo! — A arte livre de Hermeto Pascoal” (Kuarup), escrita pelo jornalista Vitor Nuzzi. Para o instrumentista, a música era a sua religião.
No Festival Internacional da Canção de 1972, Hermeto criou para a música “Serearei” um coral de porcos, algo não foi bem visto pela ditadura. À época, ele acabou sendo censurado.
Hermeto, que deixa seis filhos, 13 netos e dez bisnetos, já chegou a dizer que “a idade não existe”:
— O que tem é o dia a dia. Eu não me canso. Quando se é feliz, a gente aprende a passar a felicidade para as pessoas.